“Kafka à beira mar”, Haruki Murakami

Por Edgard Cabral

A história se divide em duas, em que em cada capítulo uma personagem é contemplada, de maneira intercalada. Assim, temos duas personagens principais, nos sendo apresentadas separadamente: nos capítulos ímpares um rapaz completando quinze anos de idade, que conversa com um “menino Corvo”, sua única companhia significativa, e que está prestes a fugir de casa, abandonando o pai com quem não se dá bem e que praticamente não convive, mesmo morando na mesma casa. O pai havia feito uma profecia de que o rapaz dormiria com a própria mãe e irmã, no que nos traz uma nítida referência à peça Édipo Rei, de Sófocles. O rapaz procura não interagir com o mundo, mas fechar-se em si mesmo e em suas metas, como a de fugir de casa, para a qual se preparou física e intelectualmente. 

A outra personagem é contemplada pelos capítulos de número par, que nos trazem inicialmente – a partir do que seriam na obra como documentos oficiais – a história de um menino que nos anos quarenta, durante a Segunda Guerra Mundial, estava excursionando com sua turma escolar e professora por uma montanha para a colheita de alimentos e um piquenique quando de repente, algo inesperado e muito estranho acontece às crianças. Desse incidente, as crianças saem ilesas, no que apenas uma delas, o menino Satoru Nakata, sofre com sequelas. Esta é, justamente, a personagem que protagoniza esses capítulos. 

“Kafka Tamura” – nome adotado pela personagem dos capítulos de números ímpares – , parte de Tóquio em viagem rumo a uma ilha onde espera trabalhar em uma livraria, no que já no trajeto conhece uma moça, e ao se interessar por ela sexualmente, se pergunta se não poderia ser sua irmã, com temor à profecia. O rapaz não guarda recordações da mãe ou da irmã, que não vê desde quando era pequeno, e com elas não tendo nenhum tipo de contato, nem mesmo sabendo como seriam suas aparências físicas, no que o deixa temeroso de se envolver com alguma mulher, pois correria o risco do incesto. 

A partir de determinado capítulo, Satoru Nakata não é mais descrito apenas por documentos oficiais que trazem o incidente que ocorreu em sua infância, mas já aparece na narrativa como um senhor idoso que possui uma característica muito peculiar: a habilidade de se comunicar com gatos. Logo descobrimos que Nakata, por sequelas do acidente sofrido na infância, possui uma certa dificuldade de raciocínio, e não consegue ler ou escrever, mesmo tendo tido acesso aos estudos, e tendo sido, inclusive, filho de um professor universitário. Também perdeu a memória de tudo que antecedeu o acidente. Contudo, nunca fica doente ou tem qualquer tipo de problema físico, e recebeu essa habilidade de comunicação com gatos, e suas conversas com eles nos são apresentadas no livro. Aproveitando-se dessa habilidade,

Nakata trabalha informalmente procurando gatos perdidos, no que colhendo informações de outros gatos chega ao paradeiro dos desaparecidos, e assim recebe recompensas. O livro é muito rico em referências culturais, um ponto que também o torna interessantíssimo, além de muito bem escrito e de duas histórias que realmente nos prendem a atenção e nos fazem querer ler cada vez mais para saber o que vem a seguir, por maior que seja o livro. É também bastante interessante a experiência de precisar ler um capítulo da outra personagem para depois prosseguir a história da anterior – caso siga a ordem pré-estabelecida da leitura – , no que parece, na espera, aumentar o desejo de saber o que vai acontecer, ao mesmo tempo que também prossegue com a história da outra personagem, já que são ambas bastante interessantes. 

Ainda, a história traz alguns pontos com um certo quê fantástico, que para leitores que, como eu, não são tão adeptos ao gênero, em nada compromete a leitura, mas pelo contrário, ficamos tão absorvidos pela história que, incrivelmente, parece fazer sentido, compondo o enredo sem prejudicá-lo, e o tornando mais interessante e misterioso. 

Destarte, considero uma obra muito original, que apesar de extensa, não se torna massante, mas pelo contrário, nos prende a todo momento, no que não poderia deixar de recomendá-la, e tendo sido a primeira obra que li do autor, me despertou o desejo de, indubitavelmente, ler as demais. O aviso que preciso dar, contudo, é a do gatilho de maus tratos animais que estão presentes em determinado momento da obra, por uma personagem com a qual o senhor Nakata se depara em seus capítulos e o faz precisar tomar uma decisão, sobre a qual não falarei mais a fim de não precipitar essa parte da história. Se trata de uma passagem extremamente pesada, de revirar o estômago, um verdadeiro obstáculo na leitura. Mas, passado esse capítulo, o retorno vale completamente a pena, pois o livro é verdadeiramente extraordinário.

– Preste atenção, Kafka Tamura. Tudo isso que você está sentindo agora é tema de diversas tragédias gregas. Os homens não escolhem seu destino, o destino é que os escolhe. Essa é a visão de mundo que existe na base das tragédias gregas. (…)

(MURAKAMI, 2008)

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