“Maluco”, Napoleón Baccino Ponce de León

Por Guilherme Dias Cazula

Escrito pelo autor uruguaio, Napoleón Baccino Ponce de León, e publicado pela primeira vez no ano de 1989 – num contexto o Uruguai havia sofrido por mais de  dez anos um regime de ditadura militar – o livro “Maluco – Romance Dos Descobridores”  é um romance ficcional que remonta os episódios e acontecimentos presentes na  expedição liderada por Hernando Magalhães, no ano de 1519, com o objetivo de chegar a ilha de Maluco.  

Contudo e para além do próprio conteúdo da narração, isto é, as diversas situações passadas pelas personagens, é possível destacar dois elementos muito  relevantes e que são fundamentais na estrutura narrativa desta obra, são eles; o tipo  de narrador que é apresentado na obra – de maneira muito engenhosa – e o modo  como o texto foi escrito, considerando, ainda elencado a este aspecto, o destinatário  final deste texto, o rei Carlos V da Espanha. 

Primeiramente, a respeito do narrador, é possível observar que se trata de uma  narração em primeira pessoa centrada na figura de Juanillo Ponce que é um bufão1,  judeu e anão que, supostamente, teria participado da viagem de Hernando  Magalhães, mas que teria sofrido as punições de ter seu nome apagado dos registros  documentais e teria tido sua pensão suspensa devido a um gracejo feito por ele a  respeito da realeza.  

Deste modo, este narrador – pouco convencional neste nicho de relatos e  crônicas de navegações – escreve, já em idade avançada e em situação de miséria, interpelando o rei a restituir-lhe a pensão e, ao mesmo tempo, oferecendo seu próprio  relato/reconto da expedição a partir de sua própria perspectiva, contrapondo a  documentação histórica relatada pelos homens a frente do comando da empresa. Esta distinção é fundamental, uma vez que Juanillo representa uma legião de pessoas que participam, direta ou indiretamente, para o sucesso desta viagem, mas que, porém, são apagadas dos registros. 

Em segundo lugar, a respeito do modo como o texto foi escrito, é possível  verificar que Juanillo escreve como quem reconta memórias, em certas passagens sua narrativa assemelha-se a um diário e aproxima-se do gênero crônica, na medida em que cria um relato para quem não empreendeu tal viagem, ou seja, o rei. Contudo, Juanillo, ao “dialogar” com o rei, revela aspectos que deveriam ser óbvios, mas que nem sempre o são, por conta deste costume em delegar o registro de relatos históricos e crônicas aos comandantes ou figuras ligadas a eles. Os resultados dos relatos destas crônicas históricas ao redor de figuras  dominantes representam importantes efeitos no inconsciente de leitores, principalmente os menos experientes, tais como; a assimilação passiva desta narrativa – que é enviesada pelo olhar da figura dominante – e o total esquecimento de que nenhuma guerra ou viagem marítima se fez sozinha ou ao redor de apenas uma figura, pois, lá havia homens com rostos, mãos, experiências, sensações, nomes, famílias, sonhos, medos, que enfrentaram as mais variadas adversidades e que, no entanto, são injustamente esquecidos na narrativa oficial. Sob esta perspectiva, portanto, a vitória pertence somente à figura central e aos demais cabe apenas o esquecimento.  

Juanillo, neste entendimento, rompe com a tradição, pois, ele não representa uma destas figuras dominantes, ao contrário, ele se encontra junto aos injustiçados, sendo ele próprio, um homem cuja origem judaica e características física e profissional lhe colocavam em uma posição de exclusão e que, apropriando-se deste não-lugar, relata não somente a importância dos homens com quem viajou, mas lembra também daqueles homens e mulheres que, muitas vezes, até sem que soubessem, haviam contribuído para a expedição marítima, mas que seriam esquecidos; 

…Como estavam as mulheres que coseram amorosas velas e os ferreiros que moldaram o bronze das ferragens e os carpinteiros que deram forma aos mastros entre o assombro da multidão e do alvoroço. E o que dizer dos que ficaram aguardando um filho, um pai, um esposo, um amigo? Sabiam eles do que estavam participando? Sabia-o o lenhador que abateu os altos carvalhos dos quais nasceram as naus negras? Sabiam-no as judias que, entre risos e salmos, cuidaram das enormes velas? …

(BACCINO, p.11-12) 

O excerto destaca o papel fundamental desempenhado por outros tantos que permanecem apartados de sua importância, alienados de sua produção concreta e para sempre mantidos afastados do reconhecimento por suas participações nos grandes projetos históricos. 

Além disso, é interessante notar as nuances da linguagem de Juanillo ao se  dirigir ao rei. Em dados momentos, sua abordagem é respeitosa apresentando o rigor e reverência socialmente esperados de qualquer um que anseia se comunicar com o rei, contudo, em outras ocasiões, Juanillo rejeita esta postura e se dirige ao monarca de modo vulgar, ou seja, recorrendo à obscenidades, ironias e chacotas, além do uso de pronomes que denotam uma certa intimidade, como, normalmente, falaria a qualquer um de seus companheiros.  

Esta diferença fundamental é observável na narrativa e revela que a intenção de Juanillo é fazer com que o rei perceba que, apesar do cargo ou posição social que ocupa, ele, ainda assim, apresenta igualdade de condições com qualquer tripulante  da expedição, pois o monarca, assim como todos eles, se encontra em uma condição que impossibilita qualquer ordem de distinção, visto que, no fim são todos humanos e sentem as necessidades da espécie da mesma maneira

Ao se deter nessa condição humana, o narrador desmistifica todo o esplendor com que registros documentais e valores sociais tendem a construir sobre a figura de reis, mas não apenas reis, como também de comandantes, capitães de navio, chefes de expedições e/ou qualquer cargo ou posição social que produzam uma certa adulação esperada.  

Juanillo, em contrapartida à estes aspectos, revela em seu relato tudo àquilo que os registros oficiais jamais revelariam; todos aqueles homens se excitam com histórias eróticas narradas por ele, se divertem com anedotas por ele contadas, fazem suas necessidades biológicas no navio e sobrevivem em condições precárias,  dividem o navio com ratos, dormem mal, se preocupam com conflitos internos entre os comandantes, sendo que, entre os conflitos um dos maiores se deve à nacionalidade portuguesa de Hernando Magalhães – principal figura nesta empresa – em uma expedição financiada pela coroa espanhola e as desconfianças com os modos pouco comunicativos de Magalhães que oculta informações dos demais comandantes. Tudo isso colabora para a substituição do efeito de mitificação destas figuras, gerado pela narrativa oficial, pela possibilidade de leitura dessas mesmas figuras de maneira mais humanizada e autêntica devido à exposição nítida, da manifestação em todos esses homens das necessidades da espécie e o quanto elas (essas necessidades) os tornam iguais. Este formato se faz presente na narrativa de Juanillo, ao referir-se tanto ao rei, quanto aos altos comandantes, aventureiros, grumetes e todos aqueles seus companheiros de viagem.

A obra trata-se, portanto, de uma leitura imprescindível a todos, uma vez que, apresenta um valor inestimável ao retratar as relações que são estabelecidas entre o narrador e o poder e, principalmente, pela possibilidade de vislumbrar o relato da expedição a partir do olhar de uma personagem completamente desajustada das classes dominantes e que, portanto, pode contribuir imensamente apresentando ao leitor tudo aquilo que passa invisível aos interesses narrados pela soberania que visa  apenas glórias, especiarias, riquezas e poder.  

Devido a esta inconformidade do narrador e às semelhanças que o leitor pode observar entre si próprio e Juanillo esta obra pode oferecer respostas, ou, na melhor das hipóteses, levantar questões sobre como nos posicionamos no mundo em que vivemos e com quais lentes estamos dispostos a enxergá-lo.

1 Também conhecido como Bobo ou palhaço. Representa uma categoria profissional, cujo objetivo é  divertir, entreter e fazer as pessoas ao redor rirem. Para isso, recorre sempre ao escárnio, sátiras,  ironias, uso de palavras consideradas vulgares/inapropriadas por uma elite intelectual.

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