“ÍON”, Platão

Por Guilherme Dias Cazula

O diálogo, atribuído à Platão, entre Íon e Sócrates é tido como o primeiro tratado que busca  conceituar e definir – por meio do método dialético1– a literatura, isto é, neste contexto, os poemas  produzidos até o período clássico da Grécia antiga.  

Para compreender o discurso produzido por Sócrates, bem como a teoria platônica encontrada  na obra, se faz necessário a introdução ao pensamento platônico e a distinção entre mundo inteligível  – compreendido pelas ideias perfeitas e inatas e o único capaz de produzir a verdade – e o mundo  sensível – corresponde ao mundo material, das formas imperfeitas percebidas pelos sentidos e que  podem nos conduzir ao engano.  

Em segundo lugar, é fundamental para o entendimento da obra, a análise da relevância da  mitologia na cultura grega. Se por um lado a filosofia se ocupou de romper com a tradição da  explicação mitológica para fenômenos naturais, por outro a mitologia ocupa posição ímpar na cultura  grega, pois os deuses são retratados em todas as manifestações artísticas do tempo, inclusive, a poesia  – passando, até mesmo, por alguns conceitos, como no caso do objeto deste estudo, o texto Íon.  

Considerando os aspectos iniciais da abordagem e a composição do texto de Platão em diálogo  – que permite o desenvolvimento das ideias de maneira fluida para expor as contradições até obter  novas ideias e definições – são introduzidos conceitos, como; teoria da inspiração – para definir a  composição poética – e a crítica do filósofo ao poeta, que serão objetos deste estudo.  

O texto, em seu desenvolvimento, esbarra em um ponto fundamental, a técnica, que servirá de  base para o conceito de teoria da inspiração. Embora, Íon, que goza do título de vencedor da disputa  de rapsodos em uma festa, se intitule o melhor dos intérpretes de Homero, não apresenta a mesma  perícia quando se trata de outros poetas.  

Nas palavras de Sócrates:

Vejo, Íon, e vou te demonstrar o que me parece ser isso. Há isso a técnica não sendo junto de ti para bem discorrer sobre Homero, como dizia há pouco, mas uma potência divina que  te movimenta, como na pedra que Eurípides nomeou Magnética, e que muitos a chamam de  Hércules.

(Sócrates, p. 3)  

Portanto, Sócrates torna evidente que o imperioso definidor que auxilia Íon não é propriamente  a técnica, ou seja, Íon não se serve da técnica para a análise, mas é tomado por uma potência que o  movimenta, isto é, nomeia-se teoria da inspiração. Esta teoria define, por meio da metáfora da pedra  magnética de Eurípedes, que o autor dos poemas é tomado por uma potência divina que o utiliza como  um intermediário para propagar uma história.  

A metáfora apresenta a pedra magnética – também conhecida como pedra de  Hércules2– como a origem, a fonte primeira no poder de atração. Imediatamente após a pedra há o  primeiro anel de ferro que se liga a ela e passa a emanar seu poder magnético para atrair outros anéis  ao primeiro formando uma cadeia de anéis conectados. Todavia, os anéis, embora estabeleçam essas  conexões uns com os outros, o fazem pela transmissão do poder magnético da origem, isto é, da pedra. 

A metáfora se constitui na transposição dos elementos citados pelos agentes envolvidos no fazer  poético, são eles; as Musas, o poeta, o rapsodo e a audiência.  

A Musa3seria, assim como a pedra, a origem do poder e inspiração e ao tomar o poeta – o  primeiro elo da corrente – é capaz de transmitir a história que deseja. Ao poeta, por sua vez, ao  receber a musa, é atribuída a função de transmitir a história ao rapsodo – segundo elo da corrente. O  rapsodo, no que lhe concerne, será o intérprete da história que será transmitida, por meio dele, à  audiência que corresponde ao terceiro elo da corrente.  

Baseado nesta metáfora, Sócrates introduz o conceito de teoria da inspiração definindo que o  poeta – lido como um sacerdote ou oráculo4– realiza a obra não por meio da técnica, mas sim pela  inspiração e possessão das musas que lhe revelam apenas seletas histórias5.  

O poeta, em sua condição de inspirado, passa ao inconsciente, ou seja, não está em posse da  razão e, sob essa condição irracional, propaga versos e feitos e, embora ele desconheça todas as  técnicas6das diversas áreas da atividade humana, as retrata nas histórias como se ele próprio fosse  perito na totalidade daquilo que expõe. O filósofo, contudo, representa o oposto do poeta, visto que,  a razão é a ferramenta indispensável a ele (filósofo) na investigação filosófica, portanto, estabelece se a oposição entre o poeta e o filósofo.  

Considerando essa oposição, caso o poeta, ainda assim, defende que as histórias que são por  ele contadas se realizam por meio da técnica, estará sendo injusto, visto que, ele não domina todas as  técnicas abordadas em suas histórias e, portanto, é enganoso. Entretanto, caso o poeta aceite que suas  realizações se devem não à técnica, mas sim ao divino e a possessão, estará sendo justo, pois, deste  modo, terá reconhecido a verdade, isto é, a origem da poesia vinculada à figura da Musa e, portanto,  seu próprio desconhecimento acerca da obra a ele atribuída.  Logo, a crítica do filósofo ao poeta no texto está centrada nessa distinção fundamental, pois,  se o poeta realiza sua obra sob domínio do divino e, em condição irracional, aborda diferentes  técnicas, ele produz o engano7e desvia a si próprio e aos demais da verdade.

  1. Método em que o interlocutor assume a perspectiva de quem não conhece as respostas para poder, por meio de perguntas  e respostas, expor as contradições na argumentação e brechas nas respostas para gradualmente extrair insights, isto é, uma  nova definição refletida, Maiêutica (parto de ideias).  
  2. Me referi, no terceiro parágrafo deste texto, sobre a importância da mitologia na cultura helênica. Cá está um exemplo,  nomeia-se a pedra em homenagem ao semideus Hércules (Héracles). 
  3. Outra referência a figuras mitológicas.  
  4. Propus essa possibilidade, pois a teoria revela o poeta como aquele que realiza estritamente aquilo que a divindade lhe  revela, portanto, está a serviço do divino semelhante aos oráculos na mitologia.  
  5. Sócrates esclarece que a perícia dos poetas em apenas um único gênero se explica pela particularidade de cada musa  que inspira cada poeta, sendo assim, atribui que cada musa possui o domínio de um gênero e o poeta, como possuído,  será perito apenas naquele em que a musa que o inspira for perita. Nos demais gêneros, o poeta será medíocre. 
  6. Sócrates e Íon chegam a conclusão de que cada área de atividade humana apresenta uma técnica particular que atende  às necessidades do ofício a que serve, portanto, quando o poeta introduz personagens de diversos ofícios na história, ele  (o poeta) se põe na posição de conhecedor de cada uma das técnicas, sendo, portanto, enganoso
  7. Encerrei o segundo parágrafo deste texto com a palavra ‘engano’ e concluo o texto retomando-a, com o objetivo de  destacar seu papel fundamental na crítica platônica à poesia e, consequentemente, ao poeta. Platão constrói sua obra em  busca da verdade e, portanto, visa banir a propagação de ideias falsas e enganosas. Procurei encerrar o ciclo textual de  maneira a enfatizar este ponto essencial.

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