“Carta a uma senhorita em Paris”, Júlio Cortázar

Por Giovanna Lima

Carta a uma senhora em Paris é o conto do escritor argentino Júlio Cortázar, que revela a história de um senhor que não desejava se mudar para o apartamento de Andrée, a quem ele endereça a carta escrita no conto. Não se sabe qual a origem de seu relacionamento com a senhorita, porém o remetente da carta, espera se mudar para o apartamento por poucos meses, até que Andrée venha visitá-lo, conforme haviam acordado. 

Cortázar tem o poder de construir um conto que passa a ideia de ambivalência, que segue as regras dos contos, mas que ainda assim parece uma história completa como um romance. A maneira que liga os pensamentos e as ações de um parágrafo para o outro tornam a leitura fluida, porém marcada por informações que podem se perder numa primeira leitura, por isso, com Júlio Cortázar, é recomendável prestar muita atenção ou ler duas vezes. Como, por exemplo, nesse conto, que parece uma carta simples e sem sentido, até se chegar ao final dela.  

Com seis páginas, Cortázar consegue envolver o leitor com o conto do homem que possui a estranha conjuntura de vomitar coelhos. Tudo pode parecer estranho no início e contar para um terceiro sobre o conto, leva o leitor a perceber o quão esquisito a história realmente é, mas que ainda assim, faz sentido. 

O remetente – que não recebe um nome durante todo o conto – da voz a seus pensamentos e quereres desde o início, mas logo, conforme se muda para o apartamento de Andrée, vê sua vida ser puxada cada vez mais para o ciclo de coelhos que continua gerindo em seu corpo e a preocupação do que fazer com eles. 

Ele revela que a cada cinco ou seis semanas, estava acostumado a vomitar um coelhinho de pelagem branca. Não havia a necessidade de contar a ninguém sobre um fato tão íntimo que acontecia tão rapidamente, ele enfiava os dedos na boca e logo retirava dali um coelho novo e feliz por ter nascido. 

O remetente parece viver de forma branda com a existência dos coelhos, mas tudo parece piorar com a mudança de apartamento. Cortázar informa ao leitor somente o necessário, não deixando abertura para compreender de fato qual o relacionamento entre o remetente e o destinatário. Dessa forma, o leitor pode encarar o conto como ele é: uma carta justificando o caos no apartamento de Calle Suipacha a uma senhorita em Paris, ou ele pode tentar compreender o que os coelhos e sua destruição representam. 

Para muitos, os coelhos representam problemas, crises, ansiedades da vida adulta, que parecem nos perseguir, e que, literalmente, perseguem o remetente. Ele sente o problema vindo, ele o recebe e nutre o problema, até o ponto que consegue resolvê-lo, despachando o problema para longe de si. 

O ponto de deslize do remetente é quando um dos coelhos vem antes da hora, logo depois de já ter vomitado um outro coelho. É uma quebra em seu calendário, algo diferente do programado, e que se adere a uma mudança que o remetente não queria que estivesse acontecido.

Quando ele resolve matar o problema ao invés de resolvê-lo, percebe que não consegue e isso parece gerar ansiedade nele, ao ponto que logo depois, ele vomita um coelho de pelagem escura, de pelagem branca e de pelagem cinza. Os problemas parecem se empilhar e se agravar em diferentes níveis. 

Cortázar cria uma estrutura para explicar as emoções conflitantes do personagem, tornando coelhos que sempre chegavam programados, em problemas cada vez maiores e constantes para o remetente. 

O leitor consegue decifrar o espiral de medo e nervosismo do personagem sendo desenvolvido em seis páginas. A presença dos coelhos, que devia ser só esporádica, se torna constante. Ora eles estão dormindo no armário do banheiro, ora estão no tapete comendo trevos, ora estão roendo as lombadas dos livros e quebrando vasos, ora estão rodando e gritando para o único humano presente e o levando à beira do abismo ou, no caso, da sacada. 

É possível visualizar que o remetente ainda tenta viver sabendo que aqueles dez coelhinhos serão seu problema constante. Com dez ele consegue lidar; com dez ele pode tentar conter seus estragos no apartamento de Andrée até que ela venha buscá-lo; com dez problemas em mãos, ele vai ter que sobreviver. Contudo, em um dia, eles se tornam 11, e com 11 ele já não consegue lidar. Pois 11 podem se tornar 12 e 12 podem se tornar 13 e não tem como saber se eles vão parar. E é com 11 coelhinhos nas mãos que ele toma sua decisão e encerra a carta.

O final é surpreendente, o que leva o conto a se tornar tão impactante, por mais que pareça uma carta como qualquer outra desde o início – não uma carta normal, pois a presença do ato de vomitar coelhos é diferente do comum –, ela se transforma em uma carta de suicídio que se aloja na mente do leitor, tornando impossível esquecer sobre esse brilhante conto de somente seis páginas que aparentemente só ia contar sobre um homem que não queria se mudar de apartamento. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *