Assim na terra como embaixo da terra

Por Maxwell Souza dos Santos

Releituras na Quarentena

Pouco havia restado, fossem homens ou animais. Enxadas e foices permanecem largadas nos cantos das plantações ressequidas pela falta de chuva. Um córrego estreito e malcheiroso fornece água, porém mingua visivelmente dia após dia, sugado pelo calor intenso que o evapora e deixa o ar úmido e pesado.

Uma prisão impossível de escapar. Uma clausura distante do olhar social. O império do abandono e da perpétua punição. Essa é a descrição simplória que representa a decadência de uma colônia penal brasileira ficcionalizada na obra da autora Ana Paula Maia intitulada Assim na terra com embaixo da terra, publicada em 2017 pela editora Record.

Num romance que se assemelha ao gênero novelístico, assiste-se em 143 páginas o horror de uma prisão inescapável, cujo fim iminente parece corroer os restos semi-humanos. Sim; essa característica é assertiva ao passo que se constrói a narrativa, pois, observa-se seres humanos tratados como animais selvagens, em específico, javalis preparados para o abate. A história faz alusão à Colônia Penal de Franz Kafka.

A princípio lemos uma prosa com uso de uma linguagem simples e objetiva, narrada em 3º pessoa em que os diálogos emanam um tom roteirista e cinematográfico. Em resumo, a prisão que funciona como colônia penal está chegando ao seu fim decadente, tendo em vista que são poucos os prisioneiros que ainda sobrevivem ali.

O diretor Melquíades, um agente penitenciário, parece ter enlouquecido ao longo de tantos anos tendo que lidar com assassinos e homens de má índole, por outra perspectiva, pode-se dizer também que sua crença está pautada na necessidade de ser pior que os demais.Temos, ainda, Bronco Gil e alguns prisioneiros que guardam a esperança da chegada de um oficial de justiça para fechar aquele lugar e livrá-los do inferno onde estão vivendo.

Sabe-se que Melquíades a cada noite de lua cheia seleciona dois prisioneiros, dando-lhes a oportunidade para fugirem, os enclausurados são caçados como animais selvagens e mortos de maneira fria e cruel. Chamo a atenção para a metáfora com o javali que o tempo todo está presente na obra. Desde a capa do livro até os gostos peculiares de Melquíades, o javali sempre está aparecendo, pois o porco selvagem é a melhor representação dos sujeitos-personagens que ali cerceiam. No entanto, a paródia não termina por aí, haja vista que é perceptível a crítica ao Estado e o modo como intervém.

Em termos teóricos, é possível citar Giorgio Agamben quando discute o Estado de direito e o Estado de exceção. Por esse viés, no primeiro caso, teríamos uma sociedade que goza de direitos plenos previstos na Constituição da Nação, enquanto que, no segundo caso, esses mesmos direitos não são inteiramente respeitados. Na história, faz-se menção ao fato de que geograficamente aquela colônia penal estava no mesmo lugar onde um dia fora uma fazenda escravocrata. Sendo assim, há um apontamento para as raízes escravistas, relacionando o ferimento dos direitos humanos daqueles presos em paralelo ao Estado de exceção que viviam os negros no período da escravidão.

É importante notar que o tempo todo há quase uma aceitação do final absurdo que se aproxima, os personagens sabem que são abandonados e que ninguém mais se preocupa com eles. Até a chegada do oficial de justiça muita coisa acontece. Será que há esperança para os enclausurados?

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