Por Rodrigo Duarte Dias Ferreira
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DESCONFORTO E SEMENTE
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O livro “Antes de Nascer o Mundo” foi escrito pelo moçambicano Mia Couto e publicado pela primeira vez em 2009. A história se passa em Moçambique e conta sobre cinco personagens, sendo o principal o mais novo: Mwanito, ao qual o leitor vê crescendo bem a sua frente, como se fosse uma criança que vive com esse leitor, na vida real. Para o leitor brasileiro, principalmente com uma cultura de leitura focada na Europa ou Estados Unidos, o estranhamento cultural pode ser um pouco chocante porque é diferente do país em que se vive e, mais ainda, diferente dos países mostrados no que é vendido para a cultura de massa. Apesar desse choque, com o passar das páginas, é perceptível que há muito em comum entre o Brasil e Moçambique em diversos aspectos, como físicos, espirituais, mentais e sentimentais.
A história tem trechos que mostram que ela se passa no final da guerra civil que ocorreu em Moçambique, em torno de 1992. Na época, o machismo era algo presente na cultura do país, como era em tantos outros, inclusive no Brasil – e ainda é. Nesse livro, ele é retratado de uma forma dura e até mesmo real, mostrando as consequências que ele pode acarretar. A forma como o machismo é exibido nas personagens principais – todas elas são homens – é cortante porque não há sinal de uma correção presente ou futura, o que é uma imagem real, nem sempre havia ou há correção e punição, embora a mudança esteja chegando cada vez mais. Os rapazes dessa história foram ensinados dessa forma e reproduzem o que aprenderam. Além disso, a voz feminina não pode se defender e, provavelmente, esse deve ter sido o propósito de Mia Couto: mostrar a realidade de várias mulheres que precisam de ajuda, onde lutar sozinha é muito difícil, mas não conseguem acesso porque não há quem ou o que possa ajudar naquele momento. O livro é focado em chocar e age como se tudo fosse normal porque, para algumas pessoas, essa realidade é normal. Ele foi escrito para causar desconforto.
A personagem principal, Mwanito, também o narrador do livro mostra como absorve todo o ambiente ao seu redor, os ensinamentos da sua comunidade. Tudo o que ele sabe na vida foi ensinado por alguém ou descoberto pela natureza do local que vivia. Mwanito não é uma personagem de “bem versus mal”, que vai lutar contra absolutamente tudo que acha que está errado na situação dele. Ele é um humano comum que aprendeu que algumas coisas ruins não podem ser mudadas porque essa é a cultura. Apesar de não ser mais uma criança fisicamente, Mwanito mostra a infância de forma sentimental e, principalmente, faz o leitor pensar o quanto o conhecimento sobre outros mundos pode libertar uma pessoa. Por exemplo, como os livros podem tirar alguém de sua bolha.
Nesse livro, Mia Couto também aborda o luto, talvez seja possível dizer até mesmo em lutos, no plural, para mostrar todas as formas que ele apresenta em cada pessoa. Outros temas sensíveis que são abordados é um spoiler da história, mas é preciso ser dito: o estupro e a humilhação feminina. Nem todo leitor pode estar emocionalmente pronto para encarar esse tipo de história, ainda que na ficção. As cenas não são explícitas e fazem sentido dentro do que aborda o livro, da proposta desse livro de impactar e causar uma dor que o leitor vai sentir arranhando.
Algo que fará o leitor se apaixonar por esse livro é o quanto Mwanito está longe de se tornar como seu pai, mesmo que ele pense o contrário. O garoto criança-adolescente mostra ter vontade de desbravar o mundo ainda que o mundo seja só a sua região, desbravar as pessoas ao redor e as histórias que têm para contar. Ele as ouve, mais do que tudo. Mwanito é um exemplo de pessoa que, certamente, poderia aprender muito se, por algum acaso, alguém o fizesse conhecer alguma biblioteca por aí. No meio de toda angústia causada pela história, Mwanito é um minúsculo ponto de esperança.
O livro é chocante, um pouco incômodo, feito para sentir que algo está fora do lugar e, por isso, deve ser lido. Os defeitos são as melhores qualidades dessa história, ela não foi criada para ser outra coisa além desse sentimento de não-pertencimento. Obviamente, o livro tem muitos pontos legais de ler, pontos que prendem o leitor além de todo desconforto. Além de tudo isso, ainda dá ao leitor uma sensação de pertencimento a esse lugar onde tudo está fora do lugar. O leitor se compreende como parte de uma mudança que precisa ser feita, que Mwanito não conseguiria fazer sozinho. A personagem principal se torna parte do leitor ao final do livro.
Por isso, o leitor deve seguir em frente com o desconforto e com uma ou outra personagem que, certamente, vai lhe causar repulsa e perceber que, infelizmente, essa história parece de fantasia, contudo, tem aspectos da vida real. A vida real causa “nós na garganta”, contudo, há sementes de esperança mesmo nos lugares mais desertos onde a vivência é praticamente uma bolha e não há jeito de conhecer mais sobre o mundo.
Amei da forma que o resumo foi feito.