Por Edgard Cabral
O conto de Edgar Allan Poe já se inicia com uma atmosfera um tanto quanto hermética, enigmática, quando o narrador nos deixa claro, já em princípio, que nem tudo nos será revelado, já que, se não nos engana, ao menos, nos omite, nem que apenas seu nome. William Wilson aparece como um nome fictício, e não poderemos saber sua verdadeira identidade a fim de não macular as páginas, já que o verdadeiro nome ele diz ser digno de desprezo, de horror e de ódio por parte de sua família. Diz-se o proscrito dos proscritos, o mais abandonado destes.
Antecipa-se, daí, a espera de um feito chocante que possivelmente virá a ser confessado pelo narrador, tamanho o peso, expresso já na primeira página, que carrega em sua consciência. Nos relata, então, carregar uma indizível miséria, e ser autor de crimes imperdoáveis, que aguardamos ser revelados.
“William Wilson” clama por piedade, julgando seus supostos crimes, que ainda desconhecemos, como consequências oriundas das circunstâncias, estas que fugiam ao seu controle. Pede que descubramos, em um deserto de erros, um pequeno oásis de fatalidade.
Conta-nos, então, do temperamento imaginativo e impressionável herdado, característico de sua família, e como tornara-se voluntarioso, dado aos mais selvagens caprichos, e às paixões indomáveis. Como, desde cedo, esse caráter mostrou-se inquietante aos amigos, e de “prejuízo positivo” a si mesmo. Ainda, causa de tormento aos pais, que não foram, segundo ele, capazes de deter suas tendências más.
Logo conduz-nos às suas memórias dos tempos de estudante, numa aldeia inglesa sombria, em que, com sua natureza ardente, entusiasta e imperiosa, tornou-se, naturalmente, de caráter marcado para seus colegas. E assim, sobressaía-se dentre os que não eram mais velhos do que ele. Exceto um. Este que, aliás, possuía o mesmo nome de batismo, o mesmo nome de família que o narrador, mesmo sem compartilhar de qualquer parentesco.
O homônimo, rivalizava com William nos estudos, nos jogos e nas discussões do recreio, recusava crer cegamente em suas assertivas, assim como a submeter-se à sua vontade, contrariando seu reinado escolar sempre que possível. Sentia-se, William, intimidado, pois reconhecia que, verdadeiramente, precisava de um esforço constante para não ser dominado pelo colega.
Os mais velhos pensavam que os Wilson fossem irmãos, e William descobriu, posteriormente, que, não bastando o nome, compartilhavam, até mesmo, da data de nascimento, por mais absurda que fosse a quantidade de coincidências.
Define seus sentimentos pelo rival como “um amálgama extravagante e heterogêneo – uma animosidade petulante que não era ainda ódio, estima, ainda mais respeito, uma boa parte de temor e uma imensa e inquieta curiosidade.” Eram, além de rivais, os mais inseparáveis camaradas, o que não diminuía, em absoluto, a hostilidade que William dirigia a ele, que, por sua vez, nunca permitia ao narrador um triunfo perfeito, pois, independente da troça ou da ironia, mesmo das mais engenhosamente maquinadas, possuía em seu caráter a calma necessária que não o permitia cair ao ridículo ou demonstrar seus pontos fracos.
O colega trazia, em seu organismo, uma enfermidade que o impedia, devido a uma fraqueza no aparelho vocal, de levantar a voz acima de um sussurro muito baixo, da qual o narrador se utilizava, em toda oportunidade, como vantagem. O adversário, contudo, era sagaz em suas represálias, e carregava consigo uma malícia digna de nota. Descobriu, por exemplo, o quanto as semelhanças entre ambos atormentava William, que não bastando o nome e a data de nascimento, logo descobrimos que também a altura e as feições eram semelhantes – uma quantidade de coincidências um tanto quanto espantosa. Não apenas as semelhanças, como também o fato dos mais velhos acharem que se tratavam de irmãos.
Assim, julgava o narrador, o rival lhe imitava perfeitamente, gestualmente e também na fala, no andar e nas roupas, na atitude de forma geral a fim de aborrecê-lo. Mesmo com a limitação no alcance vocal, foi capaz da voz imitar-lhe, em tom baixo, soando como um eco e atormentando, enormemente, ao que nos conta.
Interessante, contudo, é que o rival do narrador, sempre munido de sua dignidade, dava ao, também companheiro, valorosos conselhos, que se os tivesse seguido, teria, William, evitado muitos de seus erros. Era, de fato, o antagonista, de uma maturidade e prudência, em muito, superiores.
O conto nos leva, a partir daí, para outros cenários e momentos, fora dos muros escolares, que não caberão a essa resenha. Quais os crimes cometidos por William Wilson? Qual foi o seu destino na história? E o do seu homônimo? Poe nos transporta à sombria atmosfera dos cenários ingleses, bem como a acompanharmos os destinos do protagonista e seu antagonista, descobrindo, pouco a pouco, o desfecho sombrio dessa estória, em que, nossas dúvidas poderão – ou não – ser sanadas.