Por Giovanna Lima
“A vida continua, evidente, mas não há uma forma única de continuar”
Primavera num espelho partido é o livro belamente escrito por Mario Benedetti, escritor, poeta e ensaísta uruguaio que nos apresenta com uma história fictícia passada na ditadura Uruguaiana, misturada com relatos próprios de sua experiência vivida na mesma situação.
O livro conta com diferentes pontos de vista que enriquecem a leitura ao não só demonstrar como é para Santiago escrever cartas sentimentais para sua esposa enquanto está na prisão, mas também como a vida prossegue fora dela e como a falta de um, não é motivo para congelar a vida de outro.
Dom Rafael, por exemplo, pai de Santiago, que apesar de ter dias calmos e lentos refletindo sobre do que escaparam, e mesmo pensando no filho, ainda assim arranja uma namorada para completar sua vida. Ou como a pequena Beatriz, que apesar de não entender porque se mudaram e porque seu pai é um preso político, sua vida não para, as estações continuam passando e ela continua crescendo. Ao ponto em que é possível visualizar que a cada nova redação construída pela garota, por mais banal que seu assunto seja, é seu método de lidar com o que está acontecendo em sua mente limitada de compreensão. Por isso, não é de se assustar que a menina dos olhos de Santiago, suspeite que Graciela e Rolando sejam mais do que amigos em comum.
Se tratando de Graciela, é incrível como Benedetti consegue trabalhar muito bem com uma das questões mais controversas quando se trata do papel da esposa do homem encarcerado. Ela tem o direito de seguir em frente quando o seu marido está atrás das grades? Ou ela deve ficar presa no tempo o esperando? Nos casos mais românticos, com o intuito de satisfazer a necessidade dos finais felizes, a mulher aguarda o tempo que for preciso, pois nem mesmo o tempo deve ser forte o suficiente para acabar com o amor, e quando acaba, isso quer dizer que ele não era amor verdadeiro.
Deixando esse conceito romântico ultrapassado de lado, Benedetti transporta as emoções de Graciela com clareza quando ela conversa com Dom Rafael sobre seu impasse. Ela não deixou de amar Santiago, o tempo não os separou, ela leva seus sentimentos em consideração, sua situação atual e como nada, mesmo com a volta de Santiago, seria mais do mesmo. Essa decisão não se configura culposa em nenhuma direção, sentimentos esvaem sem qualquer explicação.
Graciosamente o tópico do “devemos ou não” contar a Santiago sobre o caso de Graciela com Rolando é decidido, eles se abstêm de contar a notícia a um homem que já luta todos os dias para continuar com as esperanças vivas, que está em um local com celas o impedindo de viver junto a outros por suas decisões políticas. Porém essa decisão não se torna mais fácil de ser aceita pelo leitor, quando o próprio Santiago descreve sentir que algo não está lhe sendo transmitido. É então, que a falta do conhecimento de como suas cartas são respondidas parece tão vital.
Entrelaçado com o romance, as exposições pessoais do autor são também colocadas como capítulos da história, e por mais difícil que seja acreditar, elas não interrompem o fluxo do livro, pelo contrário, seus relatos dão maior severidade a todo o ciclo que Santiago precisou passar para chegar onde está. É possível compreender que os meios ditatoriais utilizam do medo, da tortura e dos direitos policiais para colocar seus alvos contra a parede, ao ponto de precisarem escolher entre a morte ou o exílio.
Contrastando com o título escolhido e também a capa escolhida pela publicação da Editora Alfaguara, acredito que o buraco representado pela bala, seja uma forma de representar a ditadura militar, e como a partir dela, a visão do mundo de Santiago (e também dos outros personagens) é estilhaçada em diferentes pedaços, levando consigo a primavera que é tão almejada no livro. Não a estação, que se passa por muitas vezes antes que Santiago consiga reencontrar a família, mas a sensação do florescer e da mudança que a primavera trás, pois todos eles já se encontravam em um inverno eterno.