“O grande passeio”, Clarice Lispector

Por Victória Rodrigues

Editora Rocco: Agosto, 1998

A homenagem à ilustre escritora Clarice Lispector foi realizada pela editora “Rocco” em 1998 e reúne uma coletânea de alguns contos da autora. “Felicidade Clandestina” (1998), inclui o conto mais famoso de Clarice, “Felicidade Clandestina”, que intitula o livro, além de diversas outras histórias. Uma delas, “O grande passeio”. 

O conto retrata a trajetória de uma senhora, conhecida por “Mocinha”, que vive na casa dos outros, de favor. Apesar de ser uma senhora disposta, é humilde e bastante simpática, mas sofre maus tratos pelas pessoas com quem convive de forma sutilmente mascarada, já que Mocinha é boazinha demais para sentir tamanha indiferença. Por não ser bem-vinda na casa em que vivia, Mocinha é levada para outro lugar, passada adiante como um objeto que não possui valor, ou já expediu seu valor. Sem se dar conta da tentativa de se livrarem da responsabilidade de cuidar dela, Mocinha vê uma oportunidade de mudança, mesmo sem voz para ditar a viagem.

O tratamento de despejo à senhora é bastante marcado por essa falta de percepção da própria Mocinha. Apesar da personagem sentir certo desconforto, não existe uma ciência do que de fato está acontecendo, e se existe, a Mocinha não se importa. Ela é levada por diversas situações, como um fantoche, como uma criança que não tem com quem ficar e alguém precisa se responsabilizar. Isso em torno de uma situação bastante delicada: a senhora luta para relembrar seu passado. Como se sofresse de Alzheimer ou demência, a Mocinha tenta, com todas as suas forças, resgatar seu passado em meio às suas memórias. E é quando ela consegue, que enfim descansa. 

O conto, além de apontar para os maus tratos à idosa realizados pelos mais jovens, também contém uma característica de Clarice em suas obras, como “A Hora da Estrela”, a migração de cidadãos do nordeste para a capital do Rio de Janeiro. Essa mudança social, em meio à velhice e inocência, são os elementos principais do conto. Mocinha, uma senhora migrante do Rio de Janeiro quando jovem, não conhece a cidade, não a visita, sequer passeia, por isso a desculpa de tirá-la da casa desperta na ingênua senhora uma grande empolgação. 

“Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais abertos, em atenção às voltas violentas que a água pesada dava no estômago, acordando pequenos reflexos pelo resto do corpo com luzes” (Lispector, 1998, p. 37)

O misto de real que atiça os sentidos emergem a mente do leitor, é uma despedida. Contaminada pela apreciação, a liberdade, a liberdade de alguém foi realidade. Mocinha se sente livre, relembra sua história e deixa de se tornar um ‘peso’ na vida de pessoas que não a valorizam. Lispector torna “O grande passeio” uma aventura em torno de uma realidade pouco vista e bastante cruel às mulheres mais velhas que não possuem suporte familiar. Torna a realidade uma revolta que perdura: o desprezo alheio. É um conto triste, um conto de uma idosa sem familiares, ignorada e descartada, é um conto de uma mulher real, que vive uma realidade paralela em busca de lembranças, de respostas ao seu eu, é um conto necessário. 

LISPECTOR, Clarice. “O grande passeio” In: “Felicidade clandestina: contos”. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. pág. 29-38. 

Esta resenha faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *