Bolha de ar
Por Leonardo Vianna
O sol das nove e meia da manhã sempre é o mais alegre do que o das outras horas, esse fenômeno nem mesmo os cientistas sabem explicar a razão: eles não enxergam sentimentos nas coisas, apenas na sua ciência. Nove e meia era a hora em que Carla Nogueira tomava o seu café da manhã na varanda do seu prédio que dava para a avenida Jardim Botânico, era uma manhã de outono nem quente e nem fria, normal apenas. Enquanto lia o jornal à mesa, o seu silêncio só era quebrado pelo trânsito caótico lá embaixo e o pequeno rádio de pilha da empregada que tocava uma música desconhecida na cozinha. Sua vida sempre fora assim e jamais seria a mesma. Uma buzina ecoou alto na rua chegando até os portões do Jardim Botânico, não muito longe dali, e o rádio se espatifou no chão da cozinha fazendo a empregada dar um gritinho de susto. O café de sua xícara esfriou na mesma hora. Ela parou a xícara a alguns centímetros dos lábios e ficou meio que suspensa em devaneios, seus olhos piscavam rapidamente, não, não podia ser, aquela realidade era plástica demais, surreal.
Seus olhos piscavam muito rápido como se clamassem ávidos por luz, assim como uma planta que se volta sempre na direção do sol, aqueles olhos azulados, enfim, enxergavam. A parede de vidro temperado se despedaçara e agora não passava de restos de passado caídos aos pés de Carla. A era das sombras e dos vultos chegara ao seu fim, imagine só a sua surpresa e medo quando pode sair da caverna e ver que as sombras — antes, seus deuses — pertenciam a seres completamente novos, e que esses seres demonstram sentimentos com apenas um olhar. Imagine o terror que ela sentiu. Seu castelo de ilusões depois de um poderoso sítio agora era invadido e os seus antigos moradores esquartejados, quando não decapitados e expostos em praça pública. Por fim, nascera; era uma menina. Uma menina mulher pronta a encarar tudo e todos de frente, mas tudo o que precisava naquele momento era de força para erguer a xícara até os lábios e bebericar, mesmo que não estivesse tranquila, o seu café. A porcelana decorada com uma flor delicada e cor de rosa era pesada demais, a mão que a segurava tremia, seus dedos se avermelharam e a força com que o chão atraía aquele objeto era absurda. A mulher poderia perfeitamente largar a xícara e ela se espatifaria em mil pedaços, a empregada ouviria o som e viria correndo limpar os cacos e tudo voltaria à normalidade; mas Carla não queria largar. E não largou. Conservou o pouco de humanidade que lhe restara por alguns minutos, o animal que havia dentro dela uma hora ou outra teria de sair, mais cedo ou mais tarde, por que não sair a essa hora da manhã onde o sol brilha feliz? A “macacarla”, se assim podemos chamá-la, superou tudo o que haviam lhe ensinado durante a vida como humana: moral, costumes, cultura, educação, tudo ficou de lado. Um macaco dentro de um terno não deixa de ser um macaco, às vezes é preciso sair de dentro da vestimenta calado e deixar que a natureza grite dentro de nós. O que somos — ou pensamos ser — é apenas uma fase intermediária; entramos como seres irracionais dentro do casulo da humanidade e, quanto mais o tempo passa, acabará por sairmos de dentro dele ainda mais irracionais, senão piores, aleijados. No tempo em que estamos mergulhados muitos já saíram dos seus casulos, outros relutam em sair, mas uma coisa é igual para todos: todos terão de passar por ele, perder o resto de nós mesmos dentro dele para sairmos, então, numa manhã de sol, às nove e meia, e trucidar-nos uns aos outros.
Pois é, a Carla de então trucidou a Carla de antes sem dó, e o que restou dela? Nada além do nome. A mulher, enfim, deu-se por vencida e largou a xícara que, como já foi levantado, se fez em cacos como consequência da queda no chão. O som dos mil pedaços se criando chegou à cozinha e aos ouvidos da empregada; Carla, assustada e eriçada com os pedaços no chão, dispostos aleatoriamente pela mera casualidade do universo, o café frio espalhado no chão e o seu resto de gente. Pobre mulher! Afinal vencida pela sua natureza até então disfarçada, que irrompera a superfície. Ela saiu em disparada e se trancou no quarto, o coração pulava, o suor fugia-lhe pelos poros apesar da pequena distância entre a sala e o quarto, puxou sua blusa branca com as mãos, estourando os botões; tirou toda a sua roupa e se escondeu dentro do closet, de quem se escondeu? Não se sabe, talvez estivesse com medo da ex-Carla vir e apossar-se novamente dela, ou talvez da empregada, realmente eu não sei, juro.
Fora encontrada pelos bombeiros horas mais tarde, acocorada entre milhares e milhares de roupas, sapatos e bolsas — o seu sonho realizado —, tremendo, abraçada às suas pernas e em estado de choque. Era quase noitinha quando o marido esguio saiu direto do trabalho para o hospital aonde ela fora internada. Perguntou, chamava-lhe pelo nome e nada. A enfermeira apareceu e pôs a mão sobre o ombro, com cara de enterro. Silêncio. A coluna dele vergara-se para frente, como se um fardo enorme estivesse atado ao seu pescoço; caiu sentado numa cadeira triste e ficou a olhá-la lá com aqueles olhos abertos e assustados, a face distorcida e estranha, catatônica, real. Caiu em sono profundo e as horas voaram, a mulher continuava ali, olhando o nada, respirando, os lábios tremendo e a felicidade transbordando por dentre eles em forma de saliva: voltava a ser aquilo que em seu íntimo sempre almejara e desejara, não um desejo mesquinho desses nossos, mas um desejo sincero e realmente valioso: ser ela mesma, sem máscaras; poder despertar a sua natureza adormecida.