Por Edgard Cabral
O conto machadiano traz um diálogo entre a Modéstia e a Vaidade, manas e rivais, personificadas, no que a Vaidade toma a palavra e tenta nos convencer de ser a maior das virtudes, a mais fecunda, sensível e sublime, injustiçada pelos que a vêem como um vício, e à Modéstia caberia o lugar de preconceituosa, enquanto a Vaidade recebe a todos, sem preconceitos, a que vai do salão do rico ao albergue do pobre, do palácio ao cortiço.
“Valeria a pena ter, se eu não realçasse os teres? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que mandaste vir de tão longe esse vaso opulento? (…) E tu, que nada tens, por que aplicas o salário de uma semana ao jantar de uma hora, senão porque eu te possuo e te digo que alguma coisa deves parecer melhor do que és na realidade? (…) Por que talhas o teu vestido pelo padrão mais rebuscado, e por que te remiras ao espelho com amor, senão porque eu te consolo da tua miséria e do teu nada, dando-te a troco de um sacrifício grande benefício ainda maior?”
Machado de Assis, Elogio da Vaidade
A Vaidade, em pessoa, nos denuncia o quanto está presente em quase todos, com raríssimas exceções, desde no poeta caprichoso na estrofe, que recorre à ela, que se intitula a décima musa, até na mãe, que se carrega a mais elevada forma de altruísmo, segundo a Vaidade, também traz a mais profunda forma de egoísmo, no que maior que o amor materno é o amor de si próprio. Denúncia ainda, como em aparentes gestos de Modéstia, reside na verdade a Vaidade, como na fachada de boas ações que não se fazem se não para serem vistas e reconhecidas. Diz-se tão sedutora que penetra até a sacristia, fazendo com que os que vivem para as glórias do céu às esqueçam pelas vanglórias da terra.
“Traz no coração duas flores, a fé e eu; a celeste; colheu-a no catecismo, que lhe deram aos dez anos; a terrestre colheu-a no espelho, que lhe deram aos oito; são os seus dois Testamentos; e eu sou o mais antigo.”
Machado de Assis, Elogio da Vaidade
Ainda para convencer-nos de sua superioridade e importância, a Vaidade discursa com toda pompa, rica em vocabulário e referências culturais, e periga realmente convencer, num conto tão curto, mas que parece mais que suficiente, tanto em defesa sua, quanto em material de reflexão. Não estende seu latim por já se considerar soberana sobre quase toda a Terra, deixando para a que nomeia como irmã bastarda apenas onde se pisa com tristeza,
aquela que podemos ver com os olhos para o chão. Nomeia-se ainda, a Vaidade, como anjo protetor, zeloso, aquele que acompanha cada um do nascimento à cova, sempre cumprindo seu papel, enriquecendo e embelezando a Terra e seus habitantes, no que a irmã empobrecida em nada ou tão pouco teria colaborado.
“Que tem ela feito no mundo que valha a pena de ser citado? Foram as suas mãos que carregaram as pedras das Pirâmides? Foi a sua arte que entreteceu os louros de Temístocles? (…) Traga-me ela uma lista de seus feitos, de seus heróis, de suas obras duradouras; traga-ma, e eu a suplantarei, mostrando-lhe que a vida, que a história, que os séculos nada são sem mim.”
Machado de Assis, Elogio da Vaidade
Avisa-nos em conselho que não caiamos na tentação da Modéstia, e essa inversão do discurso que rege a moral cristã é interessantíssima, de que não vale a pena no que morre depressa, passageira, sem feitos duradouros. Uma verdadeira advogada do diabo, de si própria. A perspicácia de Machado ao encarná-la enquanto narradora, utilizando-se das qualidades da própria, é digna de nota, e o faz com tanta maestria que realmente não assustaria convencer, passando-se por sincera – a de riso franco – em contraste com a irmã que soa falsa e sem graça, mesmo sonsa, em seu discurso.