Por Juliana Santiago
A novela gótica Carmilla – A vampira de Karnstein foi publicada, primeiramente, na revista The Dark Blue no ano de 1872, e foi escrita pelo irlandês Joseph Sheridan Le Fanu. É uma das precursoras das histórias sobre vampiros, sendo inclusive a inspiração de alguns elementos presentes em Drácula, de Bram Stoker, como o uso de estacas para matar os vampiros e a transformação dessas criaturas em animais. Além disso, traz uma personagem com duas características inéditas: uma vampira mulher e lésbica – esta última sendo bem ousada para a sociedade do século XIX.
A história é narrada por Laura, uma moça que mora com seu pai em um castelo isolado na Estíria, localizada na Áustria. Com seus 27 anos, ela conta sobre seus dois momentos de horror, ambos envolvendo a mesma vampira: o primeiro, aos 6 anos, quando uma mulher invadiu seu quarto durante a noite; e o segundo, aos 19, época em que se desenvolve toda a história da novela.
Ela começa a história narrando um acidente de carruagem que ocorreu próximo ao lugar onde habita e, devido à solidão que sentia, pede ao pai a permissão para hospedar a vítima, chamada Carmilla, que era uma mulher descrita como extraordinariamente linda. Ele aceita, e Laura logo percebe, ao ver a mulher pela primeira vez, que era a mesma pessoa do episódio de horror que teve aos 6 anos. Ainda assim, uma paixão é nutrida entre as duas.
O sentimento fica cada vez mais profundo, mesmo que a história de Carmilla permaneça no mistério, já que ela se recusava a responder as perguntas de Laura:
“Você está certa em me perguntar isso ou qualquer outra coisa. Você não deve saber o quão querida é por mim ou não pensaria que qualquer confiança é pedir muito. Mas estou sob votos, mais poderosos do que o de qualquer freira, e não ouso contar minha história ainda, mesmo a você. O tempo em que você deverá descobrir tudo está próximo. Acha que sou cruel, egoísta, mas o amor é sempre egoísta. Quanto mais ardente, mais egoísta. E não tem ideia do quão ciumenta sou. Deve ir comigo, me amando, até a morte. Ou me odiando, mas ainda junto a mim; e ainda me odiando depois da morte. Não há palavra como “indiferença” em minha natureza apática.“
Ilustração por D. H. Friston para Carmilla, na revista The Dark Blue (1872)
Apesar das constantes declarações apaixonadas da hóspede, a residente do castelo reluta em aceitar o que sente, chegando a sentir uma repulsa por ela que não conseguia entender, em razão, de forma inconsciente, da sociedade da época. Conforme o tempo passa, diversos acontecimentos estranhos e sombrios começam a surgir, como a proliferação de uma doença que causava fraqueza e terríveis pesadelos – e levanta-se suspeitas sobre a atuação de Carmilla em relação às mortes, principalmente por causa de seu suposto sonambulismo, que a faz andar pela floresta todas as noites. Quando Laura contrai a mesma doença, a trama começa a se desenrolar para o clímax.
Encontra-se um forte erotismo na descrição do relacionamento entre as duas mulheres, e esse amor é uma clara transgressão dos costumes da sociedade vitoriana cristã, que abominava qualquer sexualidade que não fosse a heterossexual. A literatura gótica critica, através de elementos fantásticos relacionados ao horror e ao sombrio, tudo o que é colocado como o padrão social, como o “normal”. Dentro desse contexto, o vampiro é visto como uma criatura subversiva, contrária ao que é aceito pela sociedade, o que o leva a ser considerado como um “demônio”. Dessa forma, a personagem Carmilla vai contra os valores cristãos, seja pela sua aversão por religião – mostrada em diversas passagens da novela –, seja pela sua atração por mulheres; ela é a personificação da imoralidade. Laura, por outro lado, sente uma certa repulsa pela vampira devido à sua criação cristã, que a impede de ver sua própria sexualidade como aceitável.
Essa polêmica história gótica traz elementos que fogem à nossa zona de conforto, devido à atmosfera de suspense e horror, além do questionamento sutil dos valores decretados como corretos. Sua importância ultrapassa a época em que a novela foi publicada, visto que nossa sociedade atual ainda precisa se desvencilhar dos muitos preconceitos que a permeiam e a estruturam. A literatura gótica, através de suas estranhezas, mostra um mundo fantástico e, ao mesmo tempo, muito real.