“Caninos Brancos”, Jack London

Por Yuri Flores

“Caninos Brancos” foi um livro escrito por Jack London em 1906. Tenho este livro com grande apreço, pois sempre fui muito apegado a cães, e a premissa da história é a de retratar a trajetória de Caninos Brancos, protagonista que, após alguns capítulos iniciais de introdução do livro, torna-se nosso principal intérprete da trama, que contará suas experiências e vivências ao lado de três deuses humanos, que o ensinarão diferentes lições e perspectivas sobre a vida e as relações, bem como suas provocações oriundas de cada contexto aos quais estão inseridos. 

A narrativa ambienta-se através dos gélidos e hostis territórios situados na América do Norte, no contexto da Corrida do Ouro norte-americana, onde a história se inicia. Contexto este bastante importante para compreender as dinâmicas que acompanham a trajetória do protagonista, pois as nuances oriundas de diversos traços de personalidade de cada tutor1, bem como suas ambições e questões, estão substancialmente atreladas ao contexto da época (incursões que ensejaram o processo de dizimação de populações nativas, danos ao meio ambiente através de técnicas e atividades extrativistas agressivas, entre outras). 

A história inicia-se com a perseguição de uma alcateia a dois homens adultos (Bill e Henry), que estavam carregando um caixão com o corpo de um lorde chamado Alfred, que havia falecido nas condições austeras do ambiente em que se encontrava, restando aos dois homens o seu resgate (o livro não esclarece com maiores detalhes a razão da busca nem aprofunda a relação entre os personagens apresentados aqui). A alcateia, depois de cuidadosamente minar os recursos da matilha que puxava o transporte de Bill e Henry, começa a noite após noite também atacar e sumir com os cães da dupla, aumentando ainda mais o suspense e as condições precárias em relação à caça/cerco em curso. Esta descrição de eventos no início do livro nos auxilia a acompanhar melhor a construção dos personagens que serão de grande importância ao longo do livro, pois nos permite apreender com maior atenção nuances dos animais e suas diversas leituras e ações perante os seres humanos retratados na obra. 

Uma loba, em especial, fazia parte desta alcateia que os perseguia, demonstrando exatamente algumas características que permitem ao leitor captar maiores expressões e interpelações dos lobos além da mera descrição “instintiva” de suas possíveis “naturezas”. Eventualmente, esta loba (Kiche) tornar-se-á mãe do protagonista junto a Zarolho, outro lobo de grande porte que fazia parte do bando e demonstrava interesse na loba por meio dos sinais e disputas dentro da alcateia, sempre submisso a esta por conta de sua postura de liderança e frequentes demonstrações de pouca correspondência afetiva, até então. Nosso protagonista é apresentado num primeiro momento como um pequeno e feroz filhote cinzento, puxando a pelagem e traços de seu pai (com exceção dos olhos, que, em contraste ao pai, possuía dois).

Seu nome foi dado efetivamente por seu primeiro dono, Castor Cinzento, um líder indígena que posteriormente descobrimos ser parente do antigo dono de Kiche, que agora não mais era retratada como uma loba, mas como uma cadela que ficara por alguns meses com os lobos, eventualmente dando à luz Caninos Brancos. Assim sendo, o filhote cinzento é oriundo de duas espécies, tendo mais de lobo que de cão em sua aparência, e descobre através de sua mãe a primeira dimensão das relações com seres humanos. Castor Cinzento apresenta-se como um dono com boa relação com os animais, embora signifique tanto a Kiche quanto seu filho por uma ótica de subordinação entre ambos. Além disso, confere ao (agora jovem) lobo seu nome em virtude de seus caninos proeminentes, exibidos no primeiro contato com seres humanos, demonstrando uma mistura de desconfiança e submissão, alinhada com as primeiras experiências de sua vida, recheadas de descobertas e curiosidades sobre o funcionamento do mundo e suas leis (pequenas e maiores). 

“[…] Caninos Brancos conhecia bem a lei:  

oprimir os fracos e obedecer aos fortes.[..]” 

(Pg. 111)

Desta forma, o livro segue-se ao segundo grande marco da vida de Caninos Brancos, de sua relação conturbada e violenta com seu segundo dono, responsável pelo aumento de sua desconfiança em relação aos humanos pelas inúmeras demonstrações de violência e abusos, desencadeadas tanto pelas brigas às quais era submetido, quanto pelo tratamento degradante e ambicioso de Beleza Smith. Estas experiências fizeram por aflorar as dimensões obscuras da personalidade do protagonista, uma vez que seu dono anterior, apesar de austero em correções, era justo e não apresentava sinais de uma personalidade sádica, como poderia ser observado em Smith, que apesar de covarde, carregava consigo uma grande sede por poder e ganância. Deste modo, Caninos Brancos  iniciava-se em seu reinado do ódio, sob a tutela de seu novo dono. 

Após um bom tempo sob a tutela cruel de Beleza Smith, numa de suas lutas mortais com outros cães (as quais era submetido em função de sua distinta capacidade para luta e sagacidade proeminentes, constitutivas de sua personalidade desde seus primeiros dias como filhote), Wedon Scott, que seria seu terceiro e último dono, intercede uma violenta disputa entre Caninos Brancos e Cherokee (um buldogue que estava por quase findar a vida do protagonista, dentro de mais uma rinha de apostas com cães), salvando-o das presas que quase ceifaram sua vida. Deste episódio, Caninos Brancos passa por um processo de transição sob a tutela de Scott, onde é confrontado com novos dilemas e sensações, uma vez que Scott é retratado como um “Deus-Amor”( em contraste com o Deus-Louco anterior), exatamente por seu temperamento paternal e compreensivo. 

Estabelece, assim, um terceiro e último momento na vida de Caninos Brancos, onde sua confiança e características mais virtuosas são testadas e trabalhadas, sobretudo pelo novo contexto em que a agonia e a violência não mais são um imperativo à manutenção de sua vida. Scott demonstra-se solidário e extremamente interessado em curar as feridas emocionais e físicas de Caninos Brancos, e a amizade oriunda desta relação traz por elucidar um desfecho muito satisfatório à obra. 

As múltiplas nuances da história podem ser pontos de partida analíticos bastante ricos, uma vez que a obra é bastante voltada à descrição e construção das características dos personagens que interagem e fazem parte da trajetória do protagonista. Minha alegria em compartilhar essa obra por meio desta resenha faz-se pontualmente pela oportunidade de evidenciar uma história que desde a infância me fascina e encanta.

1 Palavra adotada para captar a essência do que no livro são retratados como “deuses” aos quais Caninos Brancos é submetido. Não é utilizada na obra, achei pertinente apenas para ilustrá-la em alusão às  dinâmicas relacionais retratadas ao longo da história.

Versão do livro lida: Editora Martin Claret, 2ª reimpressão (2016).

Indicação do livro na base Minerva: https://minerva.ufrj.br/F/?func=item-global&doc_library=UFR01&doc_number=000735390

Esta resenha faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ)

 

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