“A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector

Por Edgar Cabral

“(…) Talvez tenha sido esse tom de pré-clímax o que eu via na
sorridente fotografia mal-assombrada de um rosto cuja palavra é um silêncio
inexpressivo, todos os retratos de pessoas são um retrato de Mona Lisa.”
(LISPECTOR, 1964/2020, p. 25)

Em A paixão segundo G.H., Clarice nos convida a investigarmos a nós mesmos:
Quem somos, se não como nos vemos, o que acreditam e o que acreditamos que somos?
Quem verdadeiramente somos?


A obra trata dessa investigação partida do silêncio, silêncio tão característico nas
obras de Clarice, e silêncio que convida à reflexão, à autoanálise, que obriga a ser companhia
de si mesmo, e se observar como observaria o outro sentado à frente na mesa de café, ou em
pé frente à pia da cozinha tratando de algum afazer doméstico, só que esse outro não está.
Então, o Eu vira outro.


À G.H., que expressa desinteresse pela psicologia, pois o olhar psicológico a
impacienta, coube o papel de personagem de uma autora de obras profundamente
psicológicas, coube ter a alma desnuda e analisada por si e por nós, que ao nos
aprofundarmos na obra, possivelmente façamos mais do que sobre a personagem, uma
auto-reflexão. Talvez nós sejamos G.H., Gente Humana. Redundância cabível. Ou não
humana, desumana. O sentido humano como perdido.


O livro traz também questionamentos sociais, apontamentos sobre a desigualdade de
gênero, enfrentada na época de Clarice e até hoje, bem como a desigualdade social, o racismo
e os privilégios. Acontece que, o manifesto de Clarice é não explícito, e ainda assim o é,
reinvindica a sua obviedade, não grita, mas denuncia. Talvez um grito mudo, de voz cansada
de dizer.


G.H. sempre gostou de arrumar, acredita ser esta sua única verdadeira vocação, e
sozinha, deparou-se com a oportunidade de arrumação. Como não é incomum em uma
arrumação, que começa com algo pequeno como uma escrivaninha, e quando se percebe se
animou e já se faxina toda a casa, a personagem almeja arrumar algo material, quem sabe
uma caixa ou armário? Contudo, o que é posto, por fim, em posição de arrumação, de
desvirar, de faxina, de pôr as cadeiras em cima da mesa, é algo imaterial, um desvirar e
organizar de si, de self.


Começou pelo quarto da empregada.

“(…) Por fora meu prédio era branco, com lisura de mármore e lisura
de superfície. Mas por dentro a área interna era um amontoado oblíquo de
esquadrias, janelas, cordames e enegrecimento de chuvas, janela arreganhada contra
janela, bocas olhando bocas. (…)

Eu via o que aquilo dizia: aquilo não dizia nada. E recebia com
atenção esse nada, recebia-o com o que havia dentro de meus olhos nas fotografias;
só agora sei de como sempre estive recebendo o sinal mudo. Eu olhava o interior da
área. Aquilo tudo era de uma riqueza inanimada que lembrava a da natureza:
também ali poder-se-ia pesquisar urânio e dali poderia jorrar petróleo.”
(LISPECTOR, 1964/2020, p. 33)

A riqueza do não-dito, profundamente explorada nas obras clariceanas, evidencia a
importância do mergulho interno, do desnudar-se de si, ou desnudar-se do mundo e vestir-se
de si, auto-descoberta, auto-exame. Uma mulher de condição financeira bastante favorável
descobre a riqueza do ser, do pouco, do simples, a beleza do nada. O jorrar de petróleo na
área de serviço.


Fechada numa vida de si, para si mesma, num ambiente exclusivamente seu, G.H.
defronta-se, então, com um grito mudo, uma mensagem secreta, um julgar externo, o da
empregada Janair, já não mais presente. Pôde perceber, mais que o próprio desinteresse e
negligência, o silencioso ódio de Janair, autora de um silente protesto, que reverberou um
grito na alma de G.H., um colocar o rosto para fora da janela e olhar além de suas aspas.


E naquele quarto, aquele que anteriormente pertencera a Janair, G.H. é estrangeira
em sua própria casa. Não sabia o que encontraria, surpreendeu-se com os achados,
ofendeu-se, horrorizou-se, admirou-se. De uma vista surpreendente da janela, até um
encontro com uma barata que a tomou em meditações, a visita ao quarto fora como uma
aventura em um país desconhecido, que não se conhece a língua ou o alfabeto.


A paixão segundo G.H. traz a história de uma mulher alienada a uma realidade viva
em sua própria casa e o defrontar-se com ela. Alienada a si mesma e o que a cerca.
Estrangeira ao quarto pulsante em potência. Recomendo a leitura de tão delicada obra, que só
poderia vir de uma escrita sensível como a de Clarice. Carta de alma para alma.

Referência:
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 1a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1964/2020.

2 thoughts on ““A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector”

    1. Olá Rose, você pode adquiri-lo em livrarias físicas, como Travessa ou Leitura, em sites da Estante Virtual ou Amazon, entre outros, além de constar no acervo da nossa biblioteca.

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