Por Edgard Cabral
A história é antecedida por um texto introdutório o qual eu não recomendo a leitura prévia por tratar-se menos de um prefácio do que de uma análise da obra rica em spoilers. Mais interessante é lê-lo ao final, terminada a leitura da obra. Feita a recomendação, partamos à história em si; Esta trata de Biela, nossa heroína que nos é descrita por terceiros, aqueles que a rodeiam. Começa-se tendo, esses terceiros, por decidir o rumo de sua vida. Conrado e Constança acolheriam ou não Biela? Ou esta seria destinada a um convento? Essa ideia passou pela cabeça de Conrado, primo, tutor e testamenteiro de Biela, pois Constança, sua esposa, já queria diferente. Queria a moça para sua própria companhia, uma companhia feminina com a qual pudesse conversar, e que também lhe ajudasse a cuidar das meninas.
Biela, até então, morava na fazenda do Fundão, com o pai, Juvêncio Fernandes, um homem descrito como fechado e maníaco, “Cismado, meio louco-manso-enfezado nas suas opiniões”, mas agora, com o falecimento deste, Conrado, a quem coube a responsabilidade da filha do falecido, e sua esposa, ponderavam o destino da menina, se, vinda da roça, se encaixaria na cidade morando com eles ou, se já moça, se adequaria à vida no convento. A verdade é que, contrário ao desejo da esposa de que trouxessem a moça para habitar com eles, Conrado temia que Biela tivesse herdado o juízo do pai. Seus bens, ficariam a usufruto do primo, visto que a moça era de menor (18 anos): a Fazenda do Fundão (“de muitos e muitos alqueires de terra”), o dinheiro do banco, os títulos e joias… Sim, Biela era uma moça rica.
Por fim, Conrado cedeu aos caprichos da esposa, e trouxe a prima Biela para lhe fazer companhia. As crianças e Constança se impacientavam com a espera de sua chegada trazida por Conrado. “Não disseram nada, olharam apenas meio desiludidas a figura miúda e socada que vinha encilhada no cavalo pampa, debaixo de uma sombrinha vermelha desbotada.” – a tão esperada prima Biela decepcionou as expectativas. Logo mostrou-se moça extremamente tímida e simples. Conrado, questionando sua sanidade, já cogitava até a possibilidade de levar a prima à Barbacena, temendo que fosse como o pai – “Os repelões do ataque, a espuma da baba na boca.”
A forma como a personagem Biela é descrita na obra me remeteu às descrições feitas pelo narrador de A hora da estrela, de Clarice Lispector, Rodrigo S. M., sobre a personagem Macabéa.
“O espelho refletia uma figura encurvada, o rosto pálido e apático,
uns olhos inexpressivos que pareciam não ver, afundados além da superfície polida.
Na verdade, Biela não reparou sequer na figura que o espelho lhe mostrava. (…)
Sentia-se miserável, um trapo sujo, um tronco podre que o riacho leva. Tão
miserável que não conseguia nem ao menos sentir pena de si mesma, atordoada,
perdida. Tão miserável que nem lágrimas lhe vinham aos olhos sem brilho, mortos.
Talvez ela tivesse desaprendido de chorar”
(Autran Dourado, Uma vida em segredo)
Biela tinha medo de sair na rua e de ser apresentada a outras pessoas. Não tinha bom jeito à mesa e fazia os primos rirem. O mundo da cidade era completamente novo para ela, um mundo onde ela caiu de chofre. Por fim, descobriu a cozinha, onde ficavam os empregados e onde ela se sentia mais à vontade, como que na fazenda onde crescera. Conversava, contava casos e se abriu a amizades, tudo o que não conseguiu fazer com os parentes, mas sim com essas pessoas mais simples que agora conhecia e com quem se identificava.
Biela, apesar de rica, usava vestido de chita, o que fez com que Constança dissesse que iria levar a moça às compras. Esta, por sua vez, tentou recusar, tamanho o medo que tinha de sair na rua. Tentou argumentar com Constança, mas foi sem efeito. Constança queria fazer de Biela um projeto. Até que, ao sair com a moça, envergonhou-se, pois Biela não tinha os modos que Constança julgava adequados, a achava sem jeito. E esse foi o veredito, mesmo depois de pronta com as novas vestes. Serviu como motivo de gozação para Alfeu, filho do casal, que não deixava a moça em paz, sempre com zombaria.
Decidiu que se vingaria, que usaria todos aqueles vestidos e andaria pela cidade, era seu modo de se ver gente. “Transformava tudo numa luta de vida ou morte.” Mas logo se acalmou e desistiu, como mesmo os parentes não deram mais tanta atenção à sua figura, nem mesmo o gozador. Vivia então numa monotonia, nostálgica com a vida que levara na fazenda. Gostava mesmo era da simplicidade, e de gente humilde, simples como ela. Biela não era uma moça a qual a vida, a condição social, lhe destinava a simplicidade. Biela era simples por escolha, por identificação, mesmo tendo condições financeiras de viver com muita pompa. Nisso era diferente da personagem Macabéa a que inicialmente me remeteu. Biela tinha poder de escolha, e ativamente decidiu-se por sua simplicidade e monotonia, mesmo contrariando as expectativas que a família havia depositado nela. E se permitia até deliciar-se intimamente com os sofrimentos de Alfeu. Ousava até lhe xingar!
A situação de Biela não ser notada, não gerar atenção, contudo, de repente muda. Um evento faz com que a moça seja o centro das atenções, não apenas da família, mas da cidade. Paro as explanações por aqui a fim de dar gosto à leitura, que de tão tranquila, de ler se sentindo deitado numa rede em Minas – cenário da obra – desperta um desejo de ficar ali, lendo, até o livro acabar – leitura de uma deitada na rede só.