Julliana de Amorim Tavares Lima
Pioneiro em tantos pontos: primeiro romance escrito por uma mulher no Brasil, primeiro romance da literatura afro-brasileira (foi escrito por uma mulher afrodescendente) e precursor da temática abolicionista, é difícil sair ileso da leitura de Úrsula. Uma trama ultra romântica e trágica, repleto de críticas e controvérsias à época em que foi escrito, Úrsula se trata do desenrolar de um romance quase impossível entre a personagem-título e Tancredo, ambos brancos e repletos de traumas causados por familiares.
Nascida em 1822, filha de um homem branco com uma mulher negra e maranhense de São Luís, Maria Firmina dos Reis se enxergava exatamente como a sua época ditava, e isso fica claro logo ao lermos o prólogo de Úrsula onde ela se descreve como “uma mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados”. Porém ao seguirmos com a leitura é notável a grandeza da escrita de Maria Firmina. Escrito numa época anterior à Lei Áurea, Úrsula possui personagens pretos escravizados que são nobres e generosos, muito relevantes para o seguimento da história e muito incisivos sobre todo mal que a escravidão causa, o que anteriormente não acontecia, visto que até então personagens pretos eram escritos por pessoas brancas. Pela primeira vez na literatura brasileira, elementos da cultura preta e africana são retratados de forma positiva. Nos dias atuais, com o alto fluxo de informações que recebemos, um romance focado em pessoas brancas e com personagens pretos, escravizados e coadjuvantes pode soar arcaico, reducionista ou até ofensivo às questões de raça, porém, deve-se reforçar a ideia de que trata-se de um livro escrito numa época em que a escravidão era legalizada e pessoas pretas não eram incentivadas a ler, estudar ou muito menos escrever histórias, portanto todo mérito à Maria Firmina, que mesmo diante de todas as dificuldades de sua época, conseguiu dar voz ao povo preto.
Num primeiro momento, percebemos Úrsula como uma história de amor trágica sobre duas pessoas muito infelizes: a pobre jovem Úrsula, solitária, órfã de pai e com uma mãe enferma; e Tancredo, um jovem rico, traumatizado por crueldades causadas pelo seu pai. Uma história de heróis bondosos e vilões terríveis. Entretanto, pode-se perceber que a autora utiliza um pano de fundo sem muita complexidade para abordar temas mais profundos, como a situação das mulheres e pessoas pretas na época e as consequências que traumas psicológicos podem causar.
Úrsula foi publicado em 1860 sob o pseudônimo de “uma maranhense”, porém durante muitos anos o livro foi ignorado, até ser lançada uma segunda edição apenas em 1975, quando o nome de Maria Firmina ficou conhecido e a história de Úrsula foi difundida pelo país com o valor merecido. Úrsula não tem meias palavras, o livro não segue a linha dos romances com final feliz. Muito pelo contrário. A história é trágica do início ao fim, gerando no leitor uma empatia muito forte pelos personagens, seja pelos mocinhos ou pelos vilões, que também tem seu ponto de vista retratado no livro. Uma leitura essencial para quem deseja se aprofundar na literatura preta brasileira, entender melhor a época em que o livro foi escrito e conhecer Maria Firmina dos Reis, mais uma grande escritora brasileira que por tempos foi ignorada na nossa história.