“O tempo desconjuntado”,  Philip K. Dick

Por Helena Almeida

Escrito por um dos principais nomes da ficção científica e publicado pela editora Suma, “O Tempo Desconjuntado” é um dos primeiros livros do escritor Philip K. Dick. Possui uma belíssima capa ilustrada, e nele constam 266 páginas. A frente apresenta uma mão aparentemente feminina ajustando a frequência em um dispositivo similar a um rádio. Por outro lado, ao lermos a sinopse, nos é contada a história de Ragle Gumm, personagem principal da trama, o qual vive em uma pequena cidade americana e ganha seu sustento respondendo a um concurso de jornal. Na cidade, todos o conhecem como o homem que sempre acerta a resposta do concurso “Onde o homenzinho verde vai aparecer agora?”. Quando encontra alguns objetos inusitados, ele começa a observar estranhos padrões em seu cotidiano. Uma lista telefônica com todos os números desconectados. Uma revista com uma celebridade que ele não reconhece: Marilyn Monroe. Devido ao decorrer desse acontecimento, Sr. Gumm começa a conspirar sobre a sua realidade. Assim, a distinção entre a capa e a sinopse do livro nos deixa intrigados sobre qual seria a finalidade do rádio. Seria ele um meio de comunicação externa das pessoas, que comandam essa falsa realidade? 

O romance de Philip Dick traz de uma maneira lúdica a discussão acerca da possibilidade de a realidade em que vivemos ser construída para que fiquemos presos a ela, sem refletir sobre o sentido de tudo que abrange nosso redor. Assim, o autor nos leva a questionar se o que vivemos é real ou se a realidade é um conceito relativo. A realidade é coletiva ou individual? 

No livro, essa questão é ilustrada no fato de o personagem principal não reconhecer a presença de um conflito em curso, mesmo que a cidade na qual ele se encontra esteja rodeada por escombros de guerra. Além disso, ele participa de um concurso sem compreender a finalidade de suas respostas, de modo que suas ações – consideradas por ele inofensivas – podem ser caracterizadas como o contrário.

O autor possui sempre um ar filosófico em seus livros, e nesse me chamou a atenção as reflexões sobre a realidade vista, quando objetos se transformam em papéis com seus respectivos nomes escritos. 

““Palavras”, pensou ele.

O problema central da filosofia. A relação entre a palavra e o objeto… O que é uma palavra? Um signo arbitrário. Mas vivemos nas palavras. Nossa realidade é entre palavras, não entre coisas. Nada existe como uma “coisa”, de qualquer maneira. É uma estrutura da mente. A coisidade… um senso de substância. Uma ilusão. A palavra é mais real do que o objeto que ela representa. A palavra não representa a realidade. A palavra é realidade. Para nós, pelo menos. Talvez Deus chegue aos objetos. Nós, contudo, não. No paletó, pendurado no armário da entrada, estava a caixa de metal com os seis papéis ali guardados.”

Pág.62

“A palavra. Talvez seja a palavra de Deus. O logos. “No princípio era o Verbo.” Não sei explicar. Tudo que eu sei são as coisas que vejo e as que me acontecem. Acho que estamos vivendo em algum outro mundo, diferente do mundo que nós vemos, e durante algum tempo eu soube exatamente como era esse outro mundo. Mas eu o perdi desde então. Desde aquela noite. O futuro, talvez.”

Pág.196

“A barraca de refrigerantes se desmanchou em pontos. Moléculas. Ele viu as moléculas, descoloridas, sem as qualidades que as compunham. Então viu através daquilo, viu o espaço que havia por trás, viu a colina, as árvores e o céu. Viu a barraca de refrigerantes desaparecer, com o barraqueiro, a máquina registradora, o grande recipiente de laranjada, as torneiras de servir coca e cerveja preta, as caixas cheias de gelo e de garrafas, a grelha de preparar cachorros-quentes, os frascos de mostarda, as prateleiras cheias de cones, a fileira de tampas de metal por baixo das quais havia diferentes tipos de sorvete. No lugar onde ela existira, havia agora apenas um pedaço de papel no chão. Ele estendeu a mão e apanhou o papel. Nele estava impresso, em letras maiúsculas: BARRACA DE REFRIGERANTES”

Pág.56

Apesar de ter gostado bastante desses trechos e ideias, ao concluirmos a leitura do livro e voltarmos a essa última passagem, não nos é explicado o porquê dos objetos serem substituídos por papéis. Como o papel substitui o objeto? Magicamente? Por que, antes dos objetos sumirem, Ragle pressente que algo irá acontecer?

Logo, a meu ver, o final deixa um pouco a desejar. Mesmo com uma escrita fluida, as suas justificativas foram muito rápidas, em só uma noite ele descobre toda a realidade que lhe foi escondida, e novas questões são revividas. Tudo isso poderia ter sido desenvolvido durante o enredo do livro. A única temática trazida durante o livro inteiro foi o temor pós-guerra. Já a vertente de tecnologia nuclear e as suas consequências para o abastecimento mundial de suprimentos e a colonização da lua foram temas que surgiram repentinamente para o leitor. 

Portanto, é um livro um tanto confuso, visto que sua escrita começa de uma forma e, no meio para o fim, muda um pouco sua vertente principal. No início, o leitor é levado a pensar sobre o sentimento de desaparecimento dos objetos (“uma falsa realidade”): seja por meio de um reflexo involuntário como puxar um fio de luz que não existe, seja ao subir um degrau a mais na escada de casa, seja pelos objetos se resumirem aos seus nomes escritos. No final, temos uma trama sobre guerra e os diferentes pontos de vista de cada personagem. No entanto, apesar das rupturas na fluidez da história, o estilo da redação e a temática do texto são condizentes com o fato de este ser um dos primeiros livros do autor e com o contexto da época em que foi escrito.

Esta resenha faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ) 

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