Por Vitor da Hora
Morangos Mofados é um livro de contos do escritor Caio Fernando Abreu, publicado em 1982, considerado como a sua obra de mais destaque. Nascido no Rio Grande do Sul em 1948, Abreu atuava como jornalista antes de se dedicar integralmente à literatura. Foi um representante pioneiro do movimento LGBTQIA+ no Brasil, sendo assumidamente homossexual em plena Ditadura Militar – período no qual foi perseguido, inclusive chegando a se exilar brevemente na Europa. Morreu precocemente em 1996 aos 47 anos, na capital gaúcha, vitimado pela Aids. Caio foi vencedor de três Prêmios Jabuti por títulos posteriores, e Morangos Mofados foi eleito o melhor livro do ano (1982) pela revista IstoÉ. Apelidado de “o escritor da paixão” por Lygia Fagundes Telles, a obra de Fernando Abreu é marcada por um forte teor melancólico, quase niilista, que representa as frustrações de uma geração brasileira assombrada pela recessão econômica e a falta de liberdade política no Brasil.
O livro é composto por dezoito contos e é dividido em três partes: O Mofo, Os Morangos e um conto avulso que dá título ao livro – enquanto a primeira parte adota um tom mais denso e deprimido, a segunda é um pouco mais leve. Um exemplo do tom carregado da primeira parte do livro é o conto Terça-feira gorda, e seu desfecho brutal envolvendo um crime de ódio homofóbico. Da segunda parte do livro, destaco dois contos: Sargento García que narra um caso entre o sargento do título e um jovem, Hermes, após uma visita ao quartel para seu alistamento obrigatório – narrativa corajosa, dado o contexto de Ditadura Militar mesmo que já decadente, de achincalhe ao machismo inerente do militarismo; E o penúltimo conto do livro, Aqueles dois, que narra, de modo muito delicado, o romance entre dois funcionários de uma mesma firma. Após o namoro deles vir à tona e o casal ser demitido da empresa, em uma triste atitude homofóbica, o conto é finalizado em tom agridoce ao levantar o caráter de ressentimento inerente às pessoas que alimentam preconceitos:
“Ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.”
ABREU, 2018, p. 154
Dependendo da interpretação, o final deste conto é um dos raros momentos do livro em que se dá margem para um tom esperançoso. Já o conto homônimo ao título do livro, fala sobre um homem assombrado com um permanente gosto de morangos mofados em sua língua, em meio à tanta angústia considera, no ápice de seu desespero, o suícidio – mas é surpreendido por um pensamento que lhe faz mudar de idéia, o conto é uma metáfora que sintetiza bem os temas do livro, dando continuidade ao tom esperançoso adotado no conto anterior.
Um elemento comum na maioria dos contos citados acima é o protagonismo dado à personagens LGBTQIA+, escolha relacionada à sexualidade do autor e sua participação no movimento, numa demonstração de representatividade ainda pouco comum e condenada na década de 1980. Este contexto no qual Caio Fernando e a obra estão inseridos – o auge da traumática pandemia da Aids, que vitimou milhões de pessoas queer incluindo o próprio autor, e os anos finais da Ditadura Militar no Brasil – explicam toda a melancolia e ansiedade presente em seus escritos. Cheio de perspicazes referências artísticas (cinematográficas, musicais, literárias) – que exigem certa bagagem prévia em cultura pop por parte do leitor – Morangos Mofados não é uma leitura fácil, apesar de fluída e extremamente cativante.
Publicado há exatos 40 anos atrás, Morangos Mofados permanece um livro de uma atualidade assustadora.