Por Edgar Corteletti
A peça Medeia, tragédia grega de Eurípides, poeta trágico da Era de Ouro de Atenas, datada de 431 A.C., já se inicia com um lamento a respeito dos crimes pregressos de Medeia, bastante difundidos pelo mito, como ter traído seu pai e sacrificado seu irmão, bem como feito com que as filhas do rei Pélias matassem o próprio pai por artimanha e manipulação sua por amor a Jasão, pelos benefícios deste, que fora seu marido, mas que por já, descobrimos que a trocou e casou-se com outra moça, a filha do rei Creonte, no que deixa Medeia, que cometera inúmeros crimes bárbaros e traições pelo amor deste homem, sentindo-se humilhada e desonrada. Ainda nesse início, a partir do qual já descobrimos um pouco de seu histórico, também somos informados de que ela, a partir de tal ato do marido, já não dirige mais amor aos filhos, tendo na verdade horror a estes, que são filhos dela com Jasão. A personagem que fala, dita “Nutriz”, que fora criada da casa de Medeia, inclusive, diz temer que a mesma trame algo, que cometa mais crimes pelo ódio que a acometera. Assim se inicia a peça, num diálogo com o “Preceptor”, ancião companheiro dos filhos de Jasão com Medeia, que por sua vez, informa que ouvira dizer que o rei Creonte baniria das terras coríntias Medeia e seus filhos.
Temendo pelo mal das crianças, por já conhecer a natureza de paixão insensata da que nomeia esta obra, a “Nutriz” mantém os filhos de Medeia afastados desta, para que não sofram consequências do ódio da mãe. Então, surge a anti-heroína da peça, Medeia, a lamentar-se de sua sorte, no que a “Nutriz”, apressada, manda que as crianças corram para
dentro, a fim de fugirem aos olhos da mãe. Logo Medeia anuncia o desejo de que os próprios filhos pereçam, tal qual o pai, e que toda a casa de sua, agora desfalcada família, desapareça. Em resposta, a “Nutriz” pede por moderação da parte de Medeia, que evite os excessos, e questiona que parte os filhos teriam diante dos erros do pai. Medeia deseja, também, por tomar a própria vida, diante da sorte que lhe acometera. Fica claro o confuso desejo de vingança por parte de Medeia diante do ódio que sente, que não sabe se direciona a si, a seus próprios filhos, ao antigo marido e sua atual esposa, mas parece não haver um critério nesse sentido, almejando pelo fim de todos, o que mais dor possa causar a Jasão.
“(…) Quem para mim era tudo, bem sabe ele,
o meu marido, virou o mais vil dos homens.
De todos os que têm vida e têm noção,
nós, mulheres, somos o ser mais infeliz:primeiro é preciso com excessivo dinheiro
comprar marido e aceitá-lo como senhor
seu, esse mal inda dói mais que o mal.
Este é o máximo certame: aceitar o reles
ou o útil, pois o divórcio não é bem visto
para mulheres, nem podem repudiar o marido.
Ao chegar à sua nova morada e condições
sem vir instruída de casa, deve adivinhar
qual o melhor convívio com o seu consorte.
(…)
não compreendem que eu preferiria lutar
com escudo três vezes a parir uma vez.
(…)
eu, porém, órfã sem cidade sou ultrajada
pelo marido, conquistada em terra bárbara,
sem mãe, nem irmão, nem congêneres
para abrigar-me deste infortúnio.
Quererei alcançar de ti silêncio,
se para mim for inventada via e meio
de punir por estes males o marido
e aquele que lhe deu a filha por esposa,
silêncio! A mulher aliás plena de pavor
é covarde para resistir e ao ver o aço,
mas quando na cama calha ser lesada,
não há outro espírito mais sujo de sangue.”
Medeia denuncia os males sofridos pelas mulheres diante do matrimônio em seu contexto histórico e grita por vingança diante daquele que tão covardemente a usou e desprezou, quando surge o rei Creonte e se dirige à mesma explanando a decisão por bani-la, assim como aos seus filhos, de suas terras, no que vendo Medeia que não conseguiria convencê-lo do contrário, clama a Zeus que não se esqueça do autor dos males que a acomete e novamente se dirige a Creonte lhe pedindo favor, que por clemência permite que habite por mais um dia em sua pátria a fim de que possa preparar a si e aos filhos para o exílio, mas que se do prazo ultrapassasse seria punida com a morte. Mal sabia Creonte, contudo, que Medeia pedira por esse prazo na intenção de realizar seu plano de vingança dentro desse tempo.
É nos apresentado, então, um diálogo entre Medeia e Jasão, no qual este diz que ela “não folga loucuras”, tenta a oprimir através do silenciamento, que segundo ele, ela deveria ter tido como escolha, a culpabilizando por seu próprio banimento e tentando manipulá-la dizendo cuidar dos interesses dela e de seus filhos (como se dele também não fossem) e que não lhe quer nenhum mal. Medeia, por sua vez, corajosamente o responde, não se deixando levar por suas palavras, e lhe dizendo o quanto havia feito por ele e o quão vil ele era. Como se não suficiente o péssimo discurso de Jasão, este ainda prossegue dizendo que ela mais recebeu do que fez, dizendo que a tirara de terras bárbaras para viver na civilizada Grécia, e ainda tenta convencê-la de que o novo matrimônio geraria lucros a ela e aos filhos, como bom reconhecimento da casa a que estariam ligados, concluindo, ainda, que se não houvessem mulheres estariam cessados os males. Sim, essa é uma peça que gera muita raiva ao leitor, bem como conflitos morais visto que não há como não ter alguma empatia por Medeia diante da traição e opressão que sofrera, por piores que fossem os seus crimes.
Destarte, não posso enganá-los dessas emoções geradas pela leitura da peça, contudo é de uma qualidade ímpar, e não à toa sobreviveu por mais de dois milênios até hoje, mantendo-se muito conhecida e tornando-se até mesmo obra cinematográfica por mais de uma vez, como por direção de Lars Von Trier, e outra por Pasolini, interpretada Medeia por Maria Callas.
Ainda, retornando à peça, Medeia repensa sua atitude para com Jasão e decide ocultar a emoção e agir a partir da razão para pôr seu plano em prática, convocando-o a novo diálogo, em que dessa vez se mostra calma e solícita, tendo, contudo, por realidade, intenção de morte para os que mais importam a seu algoz.
“Agora não há esperanças de os filhos viverem,
não há, pois marcham já para o massacre.
Dos áureos diademas, a noiva receberá…
a mísera receberá enceguecimento.
Porá o adorno de Hades nos loiros cabelos
com as mãos mesmas.
Graça e brilho imortal a persuadirão a pôr
sobre si o véu e a coroa fabricada de ouro.
Noiva já adornará junto dos mortos.(…)
Ó pobre, ó mal-casado com aliados tiranos,
tu não sabes que levas para os filhos
a perda da vida e para a esposa
uma hedionda morte. (…)”
Quisera Melpômene, então, inspirar Eurípides a apresentar-nos tão trágica e rica obra, que pela não mudança da natureza e dos conflitos humanos, sobrevive aos séculos e milênios.