Por Guilherme Cazula
O presente ensaio pretende analisar os mecanismos gerais de controle que permeiam a obra 1984, composta por George Orwell, bem como os lemas doutrinários que compõem a ideologia política do regime.
Inicialmente, uma breve introdução se faz necessária. O enredo da obra se desenvolve em um país denominado Oceania, cuja estrutura física encontra-se comprometida por uma guerra constante e onde impera um regime totalitário que, por meio do pleno domínio da máquina do Estado, exerce controle completo sobre a vida de seus habitantes que vivem em prédios precários e em constante racionamento de provisões.
Neste contexto, a figura de Winston – protagonista – surge na obra como um ‘Outsider’, um homem desajustado com as leis que regem este mundo em que vive e, portanto, inicia seus primeiros passos rumo à tentativa de sabotagem ao Ingsoc1 e ao Grande Irmão2.
Nessa perspectiva, é interessante notar os mecanismos que vão, gradualmente, sendo percebidos por Winston e que permitem a manutenção do regime totalitário imposto pelo partido, mecanismos estes que consistem naquilo que será arbitrariamente denominado e organizado neste estudo em dois agrupamentos: I) “Domínios de natureza interna ou psicológica” e II) “Domínios de natureza externa”, conforme serão desenvolvidos.
Domínios de natureza externa
É interessante notar, em primeira análise, os mecanismos de controle que o partido promove e a função que eles desempenham na natureza mental dos indivíduos que compõem a população da Oceania. Tais mecanismos de controle associam-se aos domínios da linguagem, história, propaganda e, de maneira mais ampla, da política e economia.
No que concerne ao domínio da linguagem, há noções bastante esclarecedoras e precisas da relevância que a competência linguística de um indivíduo exerce para que ele possa atuar criticamente no meio em que se desenvolvem suas relações sociais. A figura de Syme – personagem que atua como gramático e que é responsável pela atualização dos dicionários de Novafala (idioma) – se revela bastante consciente da importância do léxico no idioma e a redução drástica desse léxico vai afetando a capacidade linguística dos indivíduos em se expressarem e de produzirem diálogos, críticas e até mesmo compreenderem o mundo ao seu redor. Trata-se, portanto, de um domínio fundamental, aonde o partido deteriora com veemência a fim de desestimular a interação social e a capacidade linguístico-cognitiva dos indivíduos.
No âmbito da história, por outro lado, o partido atua como árbitro, pois detém o controle absoluto dos fatos ocorridos e, por meio do aparelho estatal e dos mecanismos de propaganda, corrompe e altera dados em benefício próprio a fim de legitimar sua posição de poder. Por ora, esta informação é suficiente, pois será desenvolvido mais sobre o controle do passado e o uso da história quando for discutido o lema “Ignorância é força”.
No que tange aos fatores econômicos e políticos, cabe salientar alguns pontos importantes. Da perspectiva econômica, o partido compreende a necessidade de expor dados estatísticos e resultados – ainda que manipulados – e saldos produtivos favoráveis aos integrantes do partido – ainda que nem todos os seus membros sejam capazes de compreender significativamente o que esses dados representam – apenas com o objetivo de gerar uma sensação artificial de crescimento econômico e progresso graças ao trabalho desempenhado pelos trabalhadores sob o comando do Grande Irmão.
Do ponto de vista político, trata-se de um regime totalitário, cuja nação é estratificada entre membros altos do partido, membros externos do partido e proletas e cuja representação máxima se dá na figura do Grande-Irmão – figura cujo rosto e voz são conhecidos por todos, mas que nunca fora visto por ninguém.
Neste ponto, a criação distópica de Orwell conseguiu construir um fenômeno que suplanta qualquer outro regime totalitário conhecido na história, ao engendrar um líder que não está compelido à finitude da existência humana, pois sua existência é representada por uma máscara e, portanto, não pode morrer, pois se consagrou como um mito, quase tão imbatível quanto as ideias que propaga.
Além disso, o partido do Grande Irmão detém de mecanismos sofisticados de controle total da população, seja com recursos ou aparatos tecnológicos – como as teletelas que atuam tanto como receptoras de sinal e informações, quanto como transmissoras de informações à polícia das ideias3 – ou ainda, seja por meio de instituições doutrinárias que estimulam – desde a infância – a supervisão e policiamento de possíveis “crimes” entre os próprios indivíduos, independentemente da relação que se estabeleça entre eles.
Nestas considerações finais a respeito do organismo geral daquilo que foi aqui nomeado como “Domínios de natureza externa” do IngSoc, vale ressaltar que o controle de todos os segmentos desenvolvidos nessa sessão são aparelhados pelo Estado e convertidos para a população da Oceania por meio da propaganda, cuja atuação representa o coração do poder do partido e garante de todas as formas o controle mental dos indivíduos para que se mantenham alinhados ao partido. Os efeitos mentais/psicológicos destes mecanismos externos serão vistos na próxima sessão.
Domínios de natureza interna ou psicológica
Em segunda instância – e após ressaltar a utilização de mecanismos externos adotados pelo partido do Grande Irmão que garantem sua manutenção no poder – é imprescindível descrever a maneira como este domínio, bem como o ‘modus operandi’ do partido, se enraíza no subconsciente dos indivíduos da Oceania.
Define-se, portanto, estes domínios de natureza interna ou psicológica como aqueles que, após perceber dados ou estímulos de domínios de natureza externa, provocam uma sensação nos indivíduos. Deste modo, é possível elencar, por exemplo, as sensações internas dos personagens a partir de eventos externos, em outras palavras, é possível verificar que sentimentos são despertados a partir da experienciação, por parte dos personagens, de tais eventos; A propaganda – relatórios estatísticos com os resultados da produção no período, relatórios de guerra contra os oponentes da Oceania, o Minuto do ódio, as campanhas negativas a respeito dos seus oponentes, entre outros.
A respeito dos resultados dos relatórios estatísticos, ou seja, um evento externo e que sempre apresenta saldos positivos, há uma notável manifestação de reações de satisfação e contentamento nos personagens ao redor de Winston que sentem a confirmação da sua fé no partido e no sistema e, ao mesmo tempo, sentem-se como parte fundamental de uma estrutura que se prova, a todo momento, exitosa. Tais reações psicológicas a partir de eventos externos podem ser sentidas na obra também a partir de fenômenos como o ‘Minuto do ódio’ e os eventos de guerra.
A respeito do ‘Minuto do ódio’, é fundamental notar a existência deste mecanismo, muito bem articulado, que, primeiro projeta “um inimigo público n.º 1” que precisa ser combatido a qualquer custo e que, para detê-lo, fica, portanto, legitimada qualquer ação do partido e, em segundo lugar, promove um rito cerimonialista realizado frequentemente pelo partido de organizar os funcionários dos ministérios para lembrá-los a todo momento deste inimigo comum e direcionar o ódio destes funcionários a uma figura representativa que configura uma ameaça ao regime. Este último fenômeno cerimonialista, em especial, juntamente com a propaganda negativa do ‘inimigo da vez’ da Oceania, projeta um fator psicológico de unidade geral em prol do combate de um inimigo comum e em defesa de valores morais essenciais promovidos pelo Ingsoc.
Um terceiro fator, um tanto mais espantoso, foi notado por Hannah Arendt ao analisar os regimes totalitários do século XX e a maneira como estes regimes conquistaram adesão e, ao mesmo tempo, penetraram fundo nas camadas psicológicas do humano. Nesta análise, segundo Arendt, é espantoso como o cidadão de um regime totalitário:
…não vacila quando o monstro [o regime] começa a devorar os próprios filhos [cidadãos], nem mesmo quando ele próprio [cidadão] se torna vítima da opressão, quando é incriminado e condenado, quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados. Pelo contrário: para o assombro de todo o mundo civilizado, estará até disposto a colaborar com a própria condenação e tramar a própria sentença de morte, contanto que o seu status como membro do movimento permaneça intacto. (ARENDT, p. 441)
Neste excerto é facilmente perceptível elementos comuns entre esta característica observada na análise de Arendt a respeito dos regimes totalitários e a condução do regime do Ingsoc na obra de Orwell, pois, neste último, torna-se evidente o modo como as pessoas capturadas pelo partido e, portanto, lidas como inimigos do partido, pretendem cooperar em sua confissão pública por meio da autodenúncia de determinados crimes – muitas vezes, nem cometidos por eles – e pela demonstração de certo arrependimento e devoção/amor pela figura do Grande Irmão. Esta condição psicológica percebida nos cativos do regime é explicada por O’Brien, nos capítulos finais da obra, como uma necessidade fundamental, pois é necessário, antes da execução, que o condenado sinta admiração verdadeira e declarada ao Grande Irmão.
Este último fator leva a duas considerações; a primeira é o efeito psicológico no indivíduo condenado que, ao adotar postura de tramar contra si próprio, adquire o status de morrer consciente de que desempenhou um papel para a manutenção inabalável do partido e, a segunda, é o peso que esta confissão pública garante nos demais habitantes da Oceania, pois cria um exemplo do que acontece contra quem trama contra o partido – para aqueles que ainda guardam algum sentimento contrário ao partido – e/ou desperta mais um alvo para que os cidadãos possam depositar seu ódio.
A ideologia e os Lemas do Partido
Considerando os estudos preliminares a respeito dos mecanismos que garantem o pleno funcionamento do regime totalitário do Ingsoc, resta, agora, seguir com esta análise a partir dos lemas que orientam as doutrinas ideológicas do regime e a relação que desempenham com o duplipensamento4.
Guerra é Paz
O lema ‘Guerra é paz’, amplamente difundido pelo partido, funciona, como os demais, naquela mesma lógica do duplipensamento; onde um conceito apresenta, ao mesmo tempo, uma definição e o seu oposto/contrário. No caso deste lema, é possível atribuir este raciocínio a partir das funções que esta máxima desempenha. Se, por um lado, a guerra contribui – de acordo com a obra – para preservar uma atmosfera mental5, por outro lado, ela (a guerra) devora o excedente de produção/bens.
Pensando, primeiramente, no desenvolvimento deste lema no que concerne ao excedente de produção/bens, a análise que orienta as decisões do partido segue o modelo de produção da indústria capitalista que, ao desenvolver máquinas e produzir excedente, gera, por consequência, excedente de produção e ociosidade de mão de obra6. Nesse sentido, a solução encontrada pelo partido para evitar a “ociosidade da mão de obra” 7 e o “excedente de bens” 8 foi o envolvimento da Oceania em uma guerra sem fim cujos objetivos diretos estão associados, primeiramente, à destruição do excedente proveniente da manutenção do setor produtivo industrial em larga escala e consequentemente a manutenção da escassez de recursos às classes mais baixas em detrimento aos altos membros do partido e, o segundo objetivo, trata-se da possibilidade de manter um estado mental de terror/pânico na população da Oceania que estará sempre em embate contra uma força externa hostil.
Outro fator interessante dessa perspectiva de manutenção desta máxima é que ela parece se configurar como um consenso entre as nações rivais, Oceania, Lestásia e Eurásia; pois, na obra, é mencionado o fato de que este estado de guerra permanente entre as nações não ocorre em decorrência da tomada de territórios propriamente, mas sim com o objetivo de manter o estado de coisas mencionado no parágrafo anterior, porque, somente deste modo, será possível que as nações estejam livres para controlar seus povos.
Nesse estado de coisas, onde a guerra é permanente e em consenso entre as nações, o desenvolvimento científico não é incentivado, pois as nações precisam estar em pé de igualdade e, o resultado de todos estes conceitos abordados acerca deste lema parecem encontrar, enfim, sentido no duplipensamento; ou seja, o estado de guerra permanente se converte em paz, pois é consensual e não causa prejuízo para a manutenção dos regimes totalitários, servem apenas com o objetivo de cumprir a destruição do excedente de bens de produção e manutenção de um estado mental dos seus respectivos “cidadãos”.
Ignorância é força
Este próximo lema, descrito na obra pelo livro de Goldstein, guarda uma remissão ou um paralelo histórico inicial ao texto escrito na metade do século XIX, por Karl Marx e Friedrich Engels, “O Manifesto do Partido Comunista” (1849), onde se conceitua, logo ao início da obra, que a história da humanidade é a história da luta de classes. De modo semelhante, Goldstein abre o capítulo intitulado “Ignorância é força” para descrever, mais à frente, sobre a impossibilidade deste processo, do confronto entre as classes sociais, no âmbito do regime do Ingsoc.
Remetendo aos processos semelhantes aos verificados na obra de Marx e Engels, Goldstein expõe que, antes do regime do Grande Irmão, a sociedade era dividida em três classes sociais sempre em disputa: Altos, Médios e Baixos. Neste ponto do desenvolvimento, Goldstein remete à Revolução Francesa ao mencionar a capacidade da classe média em mobilizar as classes baixas – como massa de manobra – com o objetivo de tomar o poder e que, no final, aquela que foi fundamental para a ascensão da classe média, isto é, a classe baixa, somente mudou o seu algoz, pois sua posição social e condições em nada se alteraram.
Levando em consideração estes fatores, o regime do Grande Irmão forjou um método em que seria possível contornar a possibilidade de insurreição das classes médias e baixas e que poderia pôr em risco a soberania do partido, método este que consiste em controle total do passado.
Contudo, antes de prosseguir a análise, é interessante conceituar essa definição de passado que, nos termos da obra, trata-se do conjunto de memórias coletivas somadas aos registros escritos, portanto, documentos. Neste caso, como o partido apresenta total controle dos registros, isto é, como ele altera repetidas vezes os dados e fatos do passado em benefício próprio e, ao mesmo tempo, apresenta completo domínio das mentes dos cidadãos da Oceania e, portanto, é detentor de suas memórias, o passado é convertido em objeto das vontades de um determinado grupo – IngSoc – para atender às suas necessidades específicas.
Além disto, fica claro que, ao modificar o passado e alterar a história, os exemplos de revoluções anteriores desapareceram dos registros e da memória coletiva e, consequentemente, passam a faltar modelos/paradigmas de comparação que poderiam estimular os povos a promover revoluções futuras. Considerando, portanto, esta abordagem, pode-se depreender que a ignorância – das classes média e baixa – converte-se na força – do partido (IngSoc) do Grande Irmão.
Liberdade é escravidão
No que concerne a este último lema, que orienta o conjunto da filosofia político-ideológica do partido, a relação que se estabelece entre liberdade e escravidão também se apresenta na chave do duplipensamento explorado pelo partido.
Para compreender este aspecto, é fundamental pensar na inversão e nas sutilezas da significação em cada caso. Ao tomar, inicialmente, a máxima do modo como se encontra exposta, ou seja, liberdade é escravidão, o sentido que é possível extrair é que, de alguma forma, todo aquele que é livre, na verdade, é um escravo. Ao passo que, ao tomar o contrário: “Escravidão é liberdade” o efeito é o reverso, todo aquele que é escravo, na verdade, é livre.
Afinal, qual a relação que se pode depreender a partir deste artifício? A partir deste princípio, a figura de O’Brien, ao final da obra, descreve a condição frágil da individualidade no curso da história, ou seja, o homem, enquanto indivíduo, é incapaz de construir algo significativo. Sendo assim, resta a ele, portanto, a necessidade de se submeter e mesclar sua natureza individual pouco significativa à robusta figura do partido. Deste modo, ele não será um membro do partido, mas sim o próprio partido e é na magnitude desta figura que ele alcançará a liberdade e entrará para a história.
Nesta perspectiva, portanto, é possível compreender o lema da seguinte maneira: a liberdade – alcançada pela reunião de indivíduos na figura do partido – pressupõe a escravidão – a submissão destes mesmos indivíduos a toda e qualquer obrigação imposta pelos dirigentes do partido. Partindo desta análise, o duplipensamento novamente produz significação onde conceitos podem apresentar uma significação e seu oposto ao mesmo tempo.
1IngSoc: partido que opera o regime totalitário.
2 Grande Irmão: Figura representativa, o rosto e a voz, que estão à frente do partido. O Grande-irmão representa um mito, uma figura que não pode ser combatida, pois trata-se de um líder que não está compelido à finitude da existência humana, pois, sua existência é representada por uma máscara e, portanto, não pode morrer, pois se consagrou como um mito, quase tão imbatível quanto as ideias que propaga.
3 órgão que vigia e pune os criminosos do pensamento.
4 Termo desenvolvido em Novafala (Idioma) para designar palavras que podem apresentar dois conceitos; sua própria significação e, ao mesmo tempo, seu total oposto.
5 Ver (p.235)
6 Ociosidade de mão de obra corresponde ao processo de desaparecimento de empregos pela atribuição de funções às máquinas e, em consequência disto, mais tempo e condições melhores de desenvolvimento pessoal/educacional à grande massa. Somado a isto, têm-se o fato de que, uma sociedade com excesso de bens, muito bem instruída e com certo grau de ociosidade é uma sociedade onde há redução das desigualdades e maior distribuição de renda. Para evitar tais acontecimentos, a guerra permanente foi a condição fundamental adotada pelo IngSoc para destruir o excedente de bens sem a necessidade de interromper ou reduzir o ritmo de produção capitalista e sem gerar ociosidade aos trabalhadores.
7“Ociosidade da mão de obra”: corresponde, neste contexto, à substituição humana por máquinas em trabalhos manuais, condição esta, que garantiria às massas melhores condições de trabalho e maior possibilidade de instrução.
8“Excedente de bens”: corresponde, neste contexto e aliado ao conceito de ociosidade da mão de obra definido na nota 3, à possibilidade de distribuição de renda e bens de consumo de maneira mais homogênea, isto é, reduzindo as desigualdades sociais e, portanto, eliminando o conceito de classes sociais.
Referências
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo; Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. 1a edição. São Paulo: Editora: Companhia de Bolso, 2013.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto do partido comunista. 1a edição. São Paulo. Editora: Boitempo; 1998.
ORWELL, George. 1984. 41a reimpressão. São Paulo: Editora: Companhia das letras, 2009.
Este ensaio faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ)