Por João Daniel Ferreira
O livro tema desta resenha é considerado um dos primeiros registros literários sobre o Brasil — ao menos, pela visão do europeu recém-chegado nestas terras, no século XVI. “Duas Viagens ao Brasil” é uma obra clássica da literatura de viagem escrita por Hans Staden, um aventureiro e mercenário alemão. O livro, publicado pela primeira vez em 1557, descreve as experiências de Staden em suas duas viagens ao Brasil durante a primeira metade daquele século.
A obra é notável não apenas por sua narrativa cativante, mas também por seu valor histórico e sociocultural, oferecendo uma versão pioneira do choque cultural causado pelos primeiros encontros entre europeus e nativos. O leitor há de se atentar, no entanto, ao fato de que os escritos de Hans Staden constituem-se como uma visão eurocêntrica e, portanto, problemática do mundo recém-descoberto. Entendem-se os escritos enquanto uma síntese do que foi internalizado pelos brancos ao se depararem com o desconhecido — como uma cultura julgada primitiva, excêntrica e, aos olhos da época (e alguns de hoje), inferior.
O autor, no livro, cultua uma visão ambígua perante o que vê. Ao mesmo tempo que parece encantar-se, de certo modo, com a fauna, a flora e o conhecimento da natureza dos povos indígenas, horroriza-se com práticas consideradas chocantes para os padrões europeus, como o canibalismo ritual. A precisão de suas descrições é, por conseguinte, questionável, ao passo que a visão do europeu encontra-se contaminada e distorcida.
Uma característica notável do livro é a ênfase de Staden na providência divina como um fator determinante em sua sobrevivência. Ele acredita que foi escolhido por Deus para sobreviver e eventualmente retornar à Europa. Essa visão religiosa é parte relevante do contexto da época, quando muitos europeus viam a conquista e a colonização das Américas como uma missão divina. O eu-lírico considera suas crenças como superiores às dos seus captores.
Hans Staden teve o infortúnio de ser capturado pelos indígenas Tupinambás em suas duas viagens ao Brasil. Ele descreve os rituais de canibalismo que testemunhou de maneira detalhada e gráfica, chocando os leitores da época e contribuindo para a imagem dos indígenas como bárbaros. Algumas de suas visões são, inclusive, ilustradas, revelando animais nativos como monstros.
Além disso, o livro oferece conhecimentos valiosos sobre a vida cotidiana dos Tupinambás, incluindo seus sistemas de parentesco, práticas religiosas e habilidades de caça e pesca. Staden observa a habilidade dos indígenas em se adaptar ao ambiente natural, algo que os europeus seriam incapazes de fazer. Sua descrição das técnicas de guerra dos Tupinambás também é interessante, demonstrando como eles usavam a astúcia e a estratégia em batalhas contra tribos rivais, inclusive aliando-se aos europeus.
Em última análise, “Duas Viagens ao Brasil” é uma obra rica em detalhes e experiências pessoais que oferece uma janela única para o encontro entre culturas no século XVI. Ela levanta questões sobre a representação cultural, a interpretação de eventos históricos e as percepções de estrangeiros sobre culturas diferentes. Embora seja uma narrativa interessante e valiosa para a compreensão da história do Brasil colonial, é importante lê-la com uma mente crítica e contextualizar as descrições de Staden no contexto de sua época.
Esta resenha faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ)