Por Julie Angel
“ Por que eu escrevo?
Porque eu preciso.
Porque minha voz,
em todos os seus dialetos,
foi silenciado por muito tempo ’’
(Jacob Sam-La Rose)
Após visitar a casa em que viveu durante alguns meses do ano de 1976, Laura Alcoba narra suas memórias de infância em primeira pessoa. “A Casa dos Coelhos” é o local onde Laura e sua mãe foram abrigadas após a prisão de seu pai. Nos fundos da casa funcionava o jornal Evita Montonera, que era proibido pelo governo argentino, assim como muitos livros da época. Então, eles mantinham uma criação de coelhos para despistar curiosos.
O jornal Evita Montonera foi um veículo de imprensa fundamental para a organização revolucionária dos montoneros. O transporte do jornal ficava sob a responsabilidade de Cacho e Didi, um casal fora de suspeita. O engenheiro que constrói a casa é um homem fascinado por Edgar Allan Poe, sobretudo pelo conto “The Stolen Letter ”. Ele e o operário constroem uma parede falsa na casa para evitar suspeitas. A casa funcionava como abrigo do saber e de guerrilheiros como a mãe de Laura.
“A Casa dos Coelhos” é uma obra que emerge da experiência de Laura Alcoba como uma criança de sete anos, filha de militantes montoneros, que foi uma organização político-militar argentina e guerrilha urbana de esquerda. Eles se organizaram clandestinamente durante a ditadura civil-militar argentina.
Minha mãe finalmente decide explicar um pouco do que aconteceu. Se deixamos o nosso apartamento é porque agora os Montoneros precisam se esconder. É necessário, porque há algumas pessoas pessoas que se tornaram muito perigosas: são os membros dos comandos da AAA, a Aliança Argentina Anticomunista, que sequestram militantes como meus pais e os assassinam ou os fazem desaparecer. Portanto, é preciso que nós nos protejamos, nos escondamos e, também, que possamos reagir. Minha mãe me explica que isso se chama “viver na clandestinidade”. A partir de agora viveremos na clandestinidade, foi exatamente isso que ela me disse. (Alcoba 2008, p 20)
A ditadura civil-militar argentina vitimou aproximadamente 30 mil pessoas e sequestrou cerca de 500 bebês. É nesse cenário de guerrilha que Laura cresceu. Aos sete anos, Laura tinha noção de que a vida de sua família estava em risco. Segundo Alcoba, 2008, p. 20, eles precisam se mudar, porque a AAA – Aliança Anticomunista da Argentina sequestrava, torturava, matava e desaparecia com militantes montoneros, como os pais de Laura.
“Então minha mãe foi embora, deixando-me com eles, mas não antes de entregar a eles minha carteira de identidade, aquela com meu nome verdadeiro, aquela que eu tinha antes dos meus novos documentos falsos”. Ela passa a usar uma identidade falsa e a viver clandestinamente ainda na sua segunda infância.
Quando a polícia chegou à casa deles, revolveram tudo, mas não encontraram nada. Nenhuma arma, nenhum jornal da organização. Nem mesmo um livro proibido. Quando já estavam para sair, quase no umbral da porta, um deles deu meia-volta. Ele se deu conta, subitamente, de que durante a busca o garotinho, aquele mesmo que apenas conhecia algumas palavras, havia apontado o dedo repetidas vezes na direção do quadro: “Ali! Ali!” O homem, então, retirou o quadro da parede… Eles estão todos presos hoje em dia, tudo por causa de um garotinho que mal sabia falar. Mas comigo será diferente. Sou grande. (Alcoba 2008, p 22)
Os pais de Laura contam uma história sobre um garotinho de três anos, que acaba apontando o dedo para o esconderijo de armas e jornais de seus pais. Nesse trecho, podemos notar que a infância da autora foi marcada por medo, violência, opressão, repressão, cobranças em relação ao seu amadurecimento e pelo fardo de carregar a responsabilidade de guardar os segredos dos seus pais e agir como uma guerrilheira aos sete anos de idade. Ela sabia que a vida dos seus companheiros de guerrilha dependia do seu silêncio, sua cautela e atenção, ao voltar para casa, ela relata o medo de ser seguida: “Muitas vezes, sou eu que olho para trás.”
Em alguns trechos da obra é possível notar alguns elementos da infância que foram preservados por Laura, por exemplo, quando ela descreve a nova casa ou quando ela encontra sua mãe em uma praça de La Plata.
O que eu mais gosto quando pisco os olhos e está tão iluminado é que começo a ver as coisas de outra maneira. Gosto, sobretudo, do momento em que o contorno das coisas se dissipa e elas parecem perder o volume. Quando o sol brilha intensamente,como hoje, consigo chegar mais rápido do que de costume a esse ponto em que tudo se transforma, e onde me vejo, repentinamente, em meio a imagens planas que parecem ter sido coladas sobre uma lâmina luminosa. Pela simples pressão das minhas pálpebras consigo afastar para muito longe tudo o que me rodeia e lançá-lo contra o fundo luminoso. Mesmo a música festiva acaba se chocando com esse muro de luz. (Alcoba 2008, p 31).
Nesses trechos da obra de Alcoba, podemos notar que a obra não relata apenas o cotidiano de guerrilha e os traumas deixados durante a ditadura civil-militar argentina, a autora também narra suas sensações e impressões juvenis sobre a vida.
O livro também fala muito sobre o silêncio. “Entendi a que ponto é importante que eu me cale” (Alcoba, 2008, p. 31). Laura aprende que não pode falar sobre os momentos de guerrilha, talvez seja por isso que a autora demorou 33 anos para escrever sobre sua experiência na Casa dos Coelhos. A obra de Laura é a voz de uma criança que passou três décadas de sua vida em silêncio. Segundo Grada Kilomba (2010, p.27-37), um dos objetivos do projeto de opressão é o silenciamento. Durante mais de 300 anos, um objeto de tortura foi utilizado na boca dos escravizados, impedindo-os de falar. Os senhores brancos colocavam uma máscara nos africanos, composta por um pedaço de madeira colocado no interior da boca do sujeito negro e instalado entre a língua e o maxilar, fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo e a outra em torno do nariz ou da testa. A máscara impedia que os escravizados comessem os frutos que plantavam e também servia para emudecer e oprimir. A máscara que tortura e silencia representa os regimes brutais de silenciamento, o que é uma política sádica de conquista e dominação do chamado outro. A boca simboliza a fala e o estado oprime o órgão responsável pela enunciação, representando o que querem controlar e censurar.
A escrita de Laura Alcoba emerge como um ato político, interrompendo um silêncio que foi imposto; a escrita de quem estava ao lado dos montoneros recupera vozes que foram emudecidas. A partir do momento em que Laura Alcoba passa a escrever sobre seus traumas, a menina oprimida passa a ser autora e confronta uma estrutura que louva os anos de opressão praticada durante a ditadura civil-militar da Argentina.
“A Casa dos Coelhos” é também um ato político, pois homenageia Diana, uma mulher militante, montonera e mãe, que lutou pelo fim da repressão até o dia de sua morte. Diana era uma mulher forte e amável, que acolheu Laura e sua mãe. Diana foi brutalmente assassinada pelos ditadores, porém a obra de Laura Alcoba homenageia Diana e a eterniza. “A Casa dos Coelhos” é a voz de uma criança de sete anos que passou muito tempo em silêncio. Narrar a própria história também é um ato de tirar a máscara de silenciamento: “Eu sou quem descreve a minha própria história, e não quem é descrito”. (KILOMBA, 2010, p.28).
Esta resenha faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ)